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Governabilidade: fenômeno mensurável?

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Em 2018, quando Bolsonaro foi eleito, cientistas políticos do blog Legis-Ativo, projeto do Movimento Voto Consciente e do Estadão, se juntaram e, sob a minha organização, lançamos em alta velocidade o livro Governabilidade, publicado pela Fundação Konrad Adenauer e disponível aqui. O principal intuito da obra era muito “simples”: como um presidente que vociferava contra os partidos políticos poderia governar um país se tudo o que a Ciência Política conhecia das relações entre Câmara dos Deputados e Palácio do Planalto, em termos de evolução das agendas e interesses do Executivo, passava pelas lideranças dos partidos que compunham o governo no parlamento? Essa era a provocação — e o quadriênio 2019-2022 nos ensinou muito sobre orçamento secreto, diálogos com bancadas temáticas e relações ocultas com legendas.

Mas, para além disso, a publicação deixou outros dois desafios muito relevantes em meu cotidiano de cientista político. O primeiro deles: o conceito de governabilidade, minimamente compreendido como a capacidade de o Poder Executivo implementar a sua agenda e defender seus interesses nas relações com o Legislativo, era muito mais complexo que isso. Como ignorar as interações com o Judiciário, com a mídia, com a opinião pública e com as redes sociais? Difícil demais. Ademais, complementarmente: seria possível criar um indicador de governabilidade? Um índice capaz de aferir numericamente a capacidade de um presidente atuar nos temas de seu interesse nas relações com o Congresso, a Justiça e a opinião pública?

A resposta que obtivemos na 4Intelligence, empresa de inteligência de dados, com base em alguns anos de discussões e na interação entre cientistas de dados e cientistas políticos é positiva. Assim, bastava esperar o momento certo e lançar o indicador. Foi o que fizemos em parceria com a Agência Estado nesta semana. O timing dessa ação está associado à formatação do próprio indicador. Desejamos ter algo mensal, e a dimensão Legislativa está atrelada à capacidade de o governo aprovar suas medidas provisórias com o Congresso Nacional. Isso só ocorreu, no atual governo, em 1º de junho, prazo limite que mostra a dificuldade de Lula perante o Legislativo e as barreiras criadas pelo conflito entre Arthur Lira, presidente da Câmara, e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, em torno do rito de tramitação de tais matérias com o arrefecimento da pandemia e a volta dos trabalhos legislativos ao modelo presencial.

Vencida essa etapa, dois outros desafios merecem atenção. O primeiro: como condensar algo tão completo na forma de um número obtido a partir de apenas três dimensões e aferições? Sabemos que a política — e, especificamente, a capacidade de obter condições favoráveis para governar em relação com atores múltiplos — é algo muito mais complexo do que uma compilação de pesquisas de avaliação presidencial combinada a resultados de julgamentos de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) de causas que envolvam o Executivo no Supremo Tribunal Federal (STF) e a capacidade de aprovação de Medidas Provisórias (MPs) no Congresso. Sabemos também, por exemplo, que o desenvolvimento humano é muito mais complexo do que combinar indicadores de saúde, educação e renda. Assim, simplificar pode contribuir, e nosso objetivo foi esse, a despeito de contestações, aperfeiçoamentos e descrenças. Assim, para reforçar o indicador, o segundo desafio era essencial: estabelecer uma série histórica do que convencionamos chamar de I-GOV — Índice de Governabilidade. Tal tarefa foi possível tendo em vista aspectos atrelados a mudanças constitucionais nas formas de tramitação das MPs no do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, a partir de 2003, contemplando mensalmente 20 anos e seis governos (Lula I e II, Dilma I e II, Temer e Bolsonaro). O relatório histórico e as explicações do indicador estão disponíveis aqui.

A partir de então, o que encontramos? Em termos históricos, alguns padrões importantes. O I-GOV entre Lula I e Dilma I, até meados de 2013, apresenta resultados superiores a 60% que mostram certa capacidade de o Executivo trabalhar em certo nível de tranquilidade. Em partes do primeiro e do segundo mandatos de Lula, o resultado chega a superar 75%, o que permite a eleição da sucessora do então presidente com relativa tranquilidade, em 2010.

É com base nas jornadas de 2013 e no desavergonhamento da direita no Brasil que os resultados passam a trafegar mais próximos dos 50% em 2014, culminando em meses de meados de 2015 na casa dos 30%, que, nitidamente, são capazes de demonstrar o que se avizinhava para Dilma Rousseff — o conflito escancarado com Eduardo Cunha e o impeachment em 2016. A partir de então, Temer ficou longo período aquém dos 50%, mas se manteve no poder diante do trauma do afastamento da antecessora e a despeito das dificuldades crescentes de relacionamento com o Legislativo. Bolsonaro, por sua vez, titubeou nos dois primeiros anos de mandato e, depois de atingir por um mês, após o fatídico 7 setembro de 2021, resultado próximo dos 30% em novembro (que, aparentemente, condena o presidente ao fracasso), arrancou para a tentativa de reeleição, entregando poder ao Congresso e a partidos aliados e melhorando sua relação com o Legislativo e com a opinião pública, a partir de políticas consideradas por seus críticos como eleitoreiras. Essa é a história resumida do indicador em sua série de 20 anos.

Contudo, faltava a entrada de Lula. Seria ele capaz de devolver a governabilidade a patamares confortáveis vividos em seus oito anos no poder? A primeira medição sugere que será difícil. O presidente tem 48% de governabilidade em junho de 2023, sendo a relação com o Judiciário semelhante àquela registrada por Bolsonaro no último ano no poder. A diferença aqui é que o atual presidente parece tentar negociar com o STF, enquanto o antecessor atacava. As causas julgadas no primeiro semestre, destaca-se, ainda estão ancoradas em agendas que chegaram à Corte em 2022. Perante a opinião pública, Lula tem algo em torno de 50%, mensalmente, desde janeiro. Isso indica uma estabilidade que Bolsonaro não demonstrou em 2019. O ex-presidente começou em 58% em janeiro, mas, em junho, as avaliações positivas e negativas já estavam emparelhadas na casa dos 40%, o que o fez perder sustentação perante parcelas da sociedade. O desafio maior de Lula, no entanto, é conhecido, e o I-GOV é capaz de trazer tal resultado de forma muito fácil: o índice no Legislativo é de apenas 18%. O atual presidente teve aprovada em junho, com emendas, apenas 4 de suas 11 primeiras MPs, das quais 7 delas caducaram sem apreciação do Congresso. Os esforços para ampliar o espaço de um Legislativo eleito muito mais à direita do que o presidente têm sido verificados, e o País já debate reformas ministeriais e assiste a um diálogo mais amplo do Planalto com partidos que foram adversários em 2022. A condenação de Bolsonaro, as melhoras no cenário econômico e o bom humor de partes do mercado podem ajudar, nos próximos meses, nas tarefas associadas à governabilidade. O resultado mensal pode ser encontrado aqui.

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