ArtigoDe fora para dentro

Hora de revisitar as boas lições do passado

Maria Berta Ecija
é doutoranda pelo King’s Brazil Institute, do King’s College London.
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Maria Berta Ecija
é doutoranda pelo King’s Brazil Institute, do King’s College London.

Ao passo que avançamos no século 21, e sentimos cada vez mais os efeitos de um sistema internacional globalizado, é inegável que diplomacia e saúde precisam andar de mãos dadas. A aids teve um papel fundamental em reforçar esta codependência, mas vale a pena lembrar que outras epidemias, como do ebola e da sars, acentuaram tal necessidade. O covid-19 está nos fazendo revisitar lições essenciais que foram deixadas de lado. Nos últimos anos, parece que a saúde vem sendo considerada algo separado das seguranças nacional e internacional, do desenvolvimento econômico e das transações comerciais, além de um direito humano básico e fundamental de cada indivíduo. O covid-19 não deixa dúvidas sobre a importância deste entrelaçamento.

É preciso revisitar lições do passado, principalmente no que diz respeito ao combate do HIV, no qual o Brasil serviu de palco e deu um exemplo de cooperação em nível mundial, bem como capacidades técnica e institucional e políticas de saúde pública que foram espelho para países em desenvolvimento e desenvolvidos. Na epidemia da aids, o Banco Mundial desenvolveu um estudo para avaliar os impactos e as expectativas para o Brasil dentro deste quadro, com previsões desastrosas. Embora as estimativas estivessem corretas, os desdobramentos não foram tão graves como previstos. O Brasil já contava com o Sistema Único de Saúde (SUS) naquele então, e outras instituições que eram braços do Ministério da Saúde. Trabalhando de maneira conjunta, lograram reverter o quadro. O Brasil dispõe de uma capacidade técnica em produção e pesquisa nas áreas farmacêutica e científica, que foram grandes palcos anteriormente no combate contra o HIV/aids. Tal capacidade também conta com o fato da forte cultura pró-saúde que vinha desde, pelo menos, o Movimento Sanitário no Brasil.

Também houve forte cooperação entre o Ministério da Saúde, a Presidência da República e o Itamaraty, parceria que resultou na execução de uma série de políticas públicas de baixo custo, que contavam mais com campanhas de quebra de tabus e preconceitos e levavam educação preventiva à população. Assim, o Brasil passou de um país com previsões desastrosas a líder mundial no combate e prevenção ao HIV/aids, adquirindo forte peso em negociações internacionais na Organização Mundial da Saúde (OMS) e na Organização Mundial do Comércio (OMC), principalmente no que diz respeito às patentes e à negociação dos preços para garantir acesso e distribuição de medicamentos.

Para que o Brasil cumprisse a meta de prevenção e combate à doença, foi necessário cooperação e confiança mútua entre as instituições, algo a ser reforçado no País. Também é preciso reforçar, e não duvidar, das capacidades científica e de conhecimento técnico dos profissionais brasileiros que trabalham em desenvolvimento de farmacêuticos, regulação, logística e na cadeia produtiva e distributiva de todos estes.

Parcerias diplomáticas são de extrema importância. Na corrida da vacina contra o covid-19, muitos países, principalmente do Sul global vão precisar cooperar entre si. Existe questões de preços, distribuição de insumos e cooperação em know-how e logística, que podem ser compartilhadas para aumentar o alcance da distribuição. Neste cenário, parcerias com a China e com a Índia seriam de extrema relevância. Apesar disso, ambas as relações estão estremecidas em decorrência de discursos diplomáticos inadequados. Lembrando que quanto mais produção de medicamentos e vacinas no quadro em que estamos, mais vantagens para os países em desenvolvimento, pois os produtos seriam distribuídos a um preço mais competitivo. O Brasil acabou se alinhando diplomaticamente, na questão das vacinas, aos Estados Unidos e à União Europeia. Ambos têm seus próprios desafios para distribuir – e até mesmo possuir as vacinas. O que nos leva a cogitar uma ascensão ao nacionalismo e uma corrida internacional.

O poder discursivo da Presidência da República é um grande determinante em dois aspectos: a posição e a parceria diplomáticas do Brasil com o mundo; e como a própria nação se comporta e quais medidas sanitárias básicas são praticadas pelos cidadãos. É preciso mais responsabilidade discursiva não só dos responsáveis por governar o País, mas também da mídia (que até fez algumas campanhas educativas para a prevenção do covid-19), que poderia trazer mais informação de profissionais da área da Saúde para aumentar o alcance das campanhas de vacinação. Embora os desafios sejam muitos, o Brasil conta pelo menos com toda esta memória institucional de um passado recente, no qual a cooperação interinstitucional e os discursos público e moral, além da diplomacia, foram vias de informação e sucesso.

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