Artigo

Você sofre pelas próprias ações

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Um universo quase imensurável de informações novas nos desafia todos os dias. Parte delas, sob o formato de notícias cotidianas. Algumas reflexões mais acuradas, entretanto, nos ocupam a cabeça. A seguir, os três elementos que têm me provocado recentemente.

Elemento 1 – o jornalista Lourival Sant’Anna lançou um livro com textos publicados no Estadão sobre democracia. Entrevistei-o para o Canal UM Brasil. Ele me disse algo desafiador: a lógica protestante de um contato mais direto com Deus estava associada à ideia de arrefecer a corrompida Igreja Católica de séculos atrás. Atualmente, à luz da realidade individualista e informal, o contato com Deus virou algo banal. “Em nome de Jesus” é uma apropriação absurda de uma entidade infinitamente mais complexa que os gestos teatrais de um mundo surreal. E isso combina bem demais com o Brasil atual. Penso que, em pouco tempo, teremos o “WhatsApp de Cristo”, e isso vai transformar a letra de “Quem quiser falar com Deus”, de Gilberto Gil, em slogan de operadora de telefonia. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda se incomodava com a intimidade com que tratamos santos católicos no diminutivo. O tempo passou. E isso se acentuou. Vivemos o espetáculo da construção da fé à maneira como a interpretamos de forma singular. Em primeira pessoa, customizando entidades. E a despeito do que você pensa sobre qualquer deus, esta particularização cobra um preço: desarticula a capacidade de as religiões, no plural, falarem sobre valores universais e essenciais à convivência. A valorização da própria vida é um deles.

Elemento 2 – Numa conversa com minha mãe, falávamos sobre os absurdos do País. Estávamos a dizer que o Brasil é ruim, e que, deste jeito, não chegaremos a canto algum, mas eis que me veio a dúvida: “Como nos criticamos tanto e somos tão ruins, ao mesmo tempo que construímos um mínimo de civilidade?”. O Brasil é ruim, mas criou a Constituição Cidadã e tantas instituições essenciais. A coisa é mais complexa do que parece. Apesar disso, o presente é incerto e soa ameaçador. Veja: temos um presidente que, seguindo a lógica do último texto de Paulo Peres, publicado neste espaço, criou um governo paralelo dentro de próprio governo para lhe servir, aparentemente, de oposição. Assim, a sombra do gabinete oficial é incorporada pelo próprio governo. A sabotagem dentro de casa. Para quem sabe o que é milícia, que prega ordem em nome da ausência do Estado, funcionando ao seu modo como entidade paralela, tudo não passa de coincidência. Contudo, isso é o tal “gabinete paralelo”: a milícia de terno e gravata, institucionalizada para servir de apêndice ao governo dentro do próprio Estado. Paralelismos como tendência. Fizeram o mesmo inclusive com o orçamento da União.

Note que, até aqui, reinventamos Deus e Estado à luz de individualismos que, sintonizados aos tempos atuais e transformados em mito, seduziram um povo. Pense em séculos de vida e de valores. Perceba o que estamos tentando fazer com as mentes em tão pouco tempo – e note que nem sequer falei da pandemia.

Elemento 3 – Mais um texto deste blog. Desta vez, o mais recente de Bárbara Dias, que nos conta sobre a lógica de espetáculo da CPI. As comissões se enfraqueceram quando o Poder Executivo entendeu que até mesmo este instituto tem um preço. Pense: a CPI é a arma da minoria. O impeachment é o exército das maiorias. CPI é mais fácil instalar, basta ler o regulamento – mas tirar alguém do poder exige maiorias. Quanto maior a casa parlamentar, mais movimentos são necessários. Ainda assim, contabilizamos dois em âmbito nacional. Por quê? Por absoluta inabilidade de Collor e Dilma. Paciência. Assim, contra a arma da minoria, pode existir o controle dos blocos das maiorias. Presidente hábil, CPI neutralizada. E se Bolsonaro está apanhando, é porque não sabe se organizar. Resultado: a CPI ganha destaque. Onde? Os parlamentares aprenderam faz tempo que as TVs oficiais e as edições dos telejornais lhes garantiam visibilidade nas CPIs. Espertamente (não sabiamente) alongaram suas perguntas, estenderam o poder de retórica, exageraram nas atuações teatrais e negociaram posicionamentos nos bastidores. O que Bárbara nos mostra é que isso agora tem se guiado pelas redes sociais. Um território sem muito regramento, onde exagerar garante sucesso e protagoniza absurdos de todas as naturezas.

Junte tudo isso. Elegemos um presidente que sensibilizou parcela da sociedade sob slogan que colocava o “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Você crê que Bolsonaro é guiado por Deus? Se sim, volte ao Elemento 1 e verifique se não caiu na armadilha da entidade customizada. Isto é, em nossa atual realidade, esse deus tende a ser, livremente, o que cada um acha dele. Ainda: você crê que Bolsonaro tem o Estado acima de tudo? Se sim, volte ao Elemento 2 e perceba o que ele fez criando orçamento e governo paralelos, reproduzindo o que as milícias fazem há décadas no submundo do crime em nome de suposta ordem. Em torno desta realidade, olhando para o Elemento 3, passamos a guiar o formal pelas aberrações das redes sociais, aqui adotando o tom crítico de um aprendiz malfadado de Umberto Eco. Ou você acha que existiria outro ambiente para um presidente que “reinventa” Deus e “reinaugura” o Estado ao se comunicar com a sociedade? Sem um Deus coletivo, sem valores universais, sem Estado equilibrado e oficial – e à margem das alucinações das redes sociais – temos, diante de nós, o inesperado, criado por nós, a maior parte de todos estes problemas. E sociedade alguma reage bem à ausência de certezas, sobretudo quando tiramos dela a fé e a oficialidade que nos guiam há séculos.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.