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Jacarta está chegando!

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Em 1953, o alemão Reinhart Koselleck publicava a obra Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês, em que aponta a filosofia da história do progresso como uma espécie de sintoma do impasse entre o absolutismo e o liberalismo. O Estado absolutista teria assumido para si a responsabilidade das guerras religiosas e da consciência moral do mundo europeu, que surgiu a partir da expansão colonial e da acumulação primitiva entre os séculos 15 e 18. O liberalismo burguês, por sua vez, apontava os problemas dessa consciência, mas não queria assumir para si a responsabilidade política da guerra e da força da expansão do tempo e do mundo da civilização europeia. Fugia desse problema se refugiando no moralismo das seitas puritanas e dos encontros maçônicos.

A interpretação de Koselleck não se restringe, a meu ver, à criação da ideologia do progresso, mas também ao fato de que essa ideologia aparecia de forma aguda na implantação do Plano Marshall na Alemanha da década de 1950. Nessa década, um campo de estudo denominado “teoria da modernização” começou a ganhar influência em Washington. Segundo essa teoria, as sociedades “atrasadas” avançariam por meio de um conjunto específico de estágios, e seu ponto ideal de avanço estaria nos Estados Unidos. Nesse sentido, Koselleck percebe que esse pacote de intervenção norte-americana é uma continuação da ideologia do progresso e sua correlata patologia. Sendo tal projeto de estágios de “americanização” um substituto ainda mais fiel e radical do puritanismo que já estava presente na ideologia anglo-saxã do Iluminismo.

Dentre outras ideias, a teoria da modernização defendia que os saltos para a “modernidade” só poderiam ser feitos por uma elite racial e economicamente determinada [1]. Tais elites não precisariam ser pró-democracia. Aliás, um certo autoritarismo, especialmente militar, seria necessário para garantir que os saltos de modernização fossem realizados.

Segundo Westad [2], o que aconteceu nesse processo de “americanização” foi uma certa continuidade da política imperial e colonial anterior à Segunda Guerra Mundial. Continuidade que surpreendeu muitos líderes do chamado “terceiro mundo”, já que estes se baseavam no exemplo norte-americano para defender o ideal de autodeterminação dos povos. Essa frustração se revelou pela demonstração de uma política externa estadunidense muito agressiva. Westad afirma que, nesse sentido, a Guerra ao Terror do governo Bush não se situa fora dessa lógica [3].

E na obra de Vincent Bevins encontramos vasto material que descreve como esse processo de “modernização” contou, para sua efetivação, com assassinatos em massa em mais de 23 países do terceiro mundo. Bevins [4] argumenta que esses programas, realizados entre 1945 e 1990, não tinham um plano centralizado, nem uma sala de controle central, onde tudo era orquestrado. Mas possuíam conexão entre si. Aqueles que executaram dissidentes civis desarmados aprenderam uns com os outros e tais assassinatos em massa funcionaram como terrorismo de Estado, tanto dentro dos países como nas regiões vizinhas, sinalizando o que poderia acontecer caso houvesse resistência. A Indonésia e o Brasil serviram como modelos importantes desse processo de conversão ao processo de “americanização”, seja porque eram nações com o grande contingente populacional, seja porque tinham importância fundamental em suas regiões.

Segundo Bevins [5], o engajamento mais ativo na luta contra o comunismo e a favor da americanização dos militares locais aconteceu durante o governo Kennedy (Aliança para o Progresso na América Latina, Corpo da Paz, Agência para o Desenvolvimento Internacional etc.). Kennedy era um árduo defensor da teoria da modernização e contratou como um dos seus conselheiros principais o economista W.W. Rostow, autor de Os estágios do crescimento econômico: um manifesto não comunista [6] .Sob Kennedy, a Aliança para o Progresso foi feita com o auxílio de forças armadas estrangeiras, e sua tarefa foi aproximar seus países de um sistema econômico-social inspirado nos EUA.

Em 1940, o Brasil já havia se tornado a primeira nação latino-americana a assinar um acordo do estado-maior com oficiais militares americanos em Washington. Em 1949, foi fundada a Escola Superior de Guerra (ESG), inspirada no US National War College, onde brasileiros haviam feito treinamento. Nos anos 1950 e no começo dos anos 1960, as forças armadas do Brasil estreitaram ainda mais seus laços com Washington. Os Estados Unidos mantiveram grandes missões e serviços no Brasil, e oficiais brasileiros receberam designações extras para treinarem na escola de comando de Fort Leavenworth, ao lado de militares da Indonésia. O envolvimento ativo de J.F. Kennedy com o então “terceiro mundo” e, em particular, com suas forças armadas, garantiu a estrutura para a expansão do poder no atual Sul global.

Vale a pena lembrar aqui da Indonésia. Em 1º de outubro de 1965, o general Suharto e seus homens espalharam a história de que o Partido Comunista da Indonésia (PKI) havia trazido, no dia anterior, cinco generais à base aérea de Halim e iniciado um depravado ritual demoníaco. Disseram que integrantes do Gerwani, o movimento das mulheres indonésias, dançaram nuas, enquanto outras mutilavam e torturavam os generais, cortando seus órgãos genitais e arrancando seus olhos antes de assassiná-los. O PKI teria assim longa lista de pessoas que planejava matar, e valas comuns já estavam preparadas. Afirmaram ainda que a China havia entregado secretamente armas às Brigadas da Juventude do Povo, e o jornal do exército indonésio publicou fotos dos corpos dos generais mortos, “cruel e brutalmente assassinados” em atos de tortura que constituíam “uma afronta à humanidade”. No entanto, foram os que diziam se defender de uma rebelião que promoveram um massacre a civis sem possibilidade de defesa e, muitas vezes, sem compreender a razão pela qual estavam sendo assassinado [7] (aproximadamente 1 milhão de pessoas foram assassinadas e mais de 1 milhão foram para campos de concentração).

Aliás, essa história de militares sendo mortos com facas a noite em suas camas, inventada pelos militares da Indonésia, foi bastante inspirada na Intentona, deflagrada pelos militares brasileiros em 1935. É provável que a Intentona de 1935 tenha servido como uma lenda fundamental para as forças armadas e para um movimento anticomunista que estava sendo formado na escola de Fort Leavenworth, Kansas, onde se formavam militares, tanto da Indonésia como do Brasil [8].

Ora, antes do golpe na Indonésia, o golpe contra João Goulart teve início, em 31 de março de 1964, e muitos dos conspiradores estavam motivados pela crença de que os comunistas haviam construído algum tipo de plano revolucionário em torno de Jango. Isso era inteiramente falso, mas era consistente com o anticomunismo fanático daquele tempo, desde as audiências de McCarthy e a mitologia em torno da Intentona. A ideia era: onde quer que houvesse comunistas, não importando quão limitados em número e quais fossem suas declarações, existia algo profundamente perverso planejado.

Quando o golpe a Jango começou, pelo general Olímpio Mourão Filho [9], o Departamento de Estado dos Estados Unidos deu início à operação apelidada de Brother Sam e ofereceu tanques, munições e porta-aviões aos conspiradores. O congresso Brasileiro declarou a presidência “vaga”, em clara violação da Constituição. O primeiro Ato Institucional removeu do cargo em torno de 40 parlamentares de esquerda;  os outros 361, com o apoio irrestrito da mídia, designaram o general Castelo Branco presidente da República brasileira. O embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, chamou o golpe de 1964 de “a mais decisiva vitória pela liberdade de meados do século XX” [10].

A “Operação Jacarta” e o golpe de 1964 no Brasil serviram tanto para a divulgação de técnicas de contrainsurgência para a difusão do anticomunismo fanático como para práticas de terrorismo de Estado. O objetivo era gerar medo e impossibilitar qualquer resistência ao projeto de conversão à “americanização”. Por exemplo, um dos mecanismos de terror utilizado pelo grupo Patria y Libertad no Chile, era o envio de cartas para os defensores do governo Allende, com a seguinte advertência: Jacarta está chegando!


[1] Gilman, Nils. Mandarins of the Future: Modernization Theory in Cold War America, Baltimore: John Hopkins Press, 2003.

[2] Westad, Odd Arne. The Global Cold War: Third World Interventions and the Makingof Our Times. London: Cambridge University Press, 2007.

[3] Aqui vale mencionar a interessante tese de doutorado de Erica Resende, intitulada: Americanidade, Puritanismo e Política Externa: a (re)produção da ideologia puritana e a construção da identidade nacional nas práticas discursivas da política externa norte-americana, tese defendida na USP em 2009. Erika defende que os discursos utilizados na Guerra ao Terror são inspirados nos trechos dos “Jeremiadas” do Antigo Testamento, interpretados pelos puritanos como fundamentais para a criação da identidade da americanidade. Eu concordo com Erika mas acho que estão presentes também desde a política da Guerra Fria.

[4] Bevins, Vincent. O Método Jacarta: a cruzada anticomunista de Washington e o programa de assassinatos em massa que moldou o mundo. São Paulo: Autonomia literária, 2022.

[5] Bevins, Vincent. O Método Jacarta: a cruzada anticomunista de Washington e o programa de assassinatos em massa que moldou o mundo. São Paulo: Autonomia literária, 2022.

[6] Rostow, W.W. The Stages of Economic Growth. London: Cambridge University Press, 1960.

[7] Bevins, Vincent. O Método Jacarta: a cruzada anticomunista de Washington e o programa de assassinatos em massa que moldou o mundo. São Paulo: Autonomia literária, 2022.

[8] É interessante mencionar que o general Castelo Branco havia treinado em Fort Leavenworth, no Kansas. Lá, ele conheceu Vernon Walters, o adido militar que Kennedy enviou ao Brasil. Após estudarem juntos no Kansas, Castelo Branco e Walters foram colegas de quarto, morando juntos em um pequeno hotel na Itália.

[9] O mesmo general que, anos antes, em 1937, havia criado a falsa conspiração judaico-comunista, conhecida como Plano Cohen, que segundo o general, incluía diretrizes para invadir a casa de brasileiros ricos e estuprá-los.

[10] Segundo Lincoln Gordon, o Brasil, sem intervenção norte-americana, poderia se tornar “A China dos anos 1960”. Ex-professor da Harvard Business School, Gordon havia trabalhado no Plano Marshall antes da Aliança para o Progresso.

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