O Reino Unido perdeu seu primeiro-ministro. E estou em Oxford, para uma semana de estudos, menos de cinco dias depois do ocorrido. Para os simpatizantes da lógica parlamentarista, esta é a essência deste sistema de governo: crises políticas duram pouco. É mesmo? Você comprou essa falácia assim, sem pensar? Opções institucionais formais dão respostas positivas ou negativas para uma série de situações, e devemos considerar que combinações de regras e costumes atendem, de maneira mais ou menos eficiente, a determinados instantes e seus dilemas. Aqui, o primeiro grande desafio: temos a exata dimensão do que estamos vivendo para que, a partir disso, possamos buscar soluções e alternativas?
Faz alguns anos, a Fundação Konrad Adenauer do Brasil, braço local de uma organização mundial vinculada ao partido Democrata Cristão da Alemanha, que ficou no poder com Angela Merkel por 16 anos, e já vinha de igual período com Helmut Kohl, entre 1982 e 1998, pediu que eu tomasse café da manhã em um hotel de Brasília com uma parlamentar germânica. Ela acumulava a função de dirigente da instituição e, antes de uma reunião com o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para discutir sistema de governo, queria me ouvir sobre o parlamentarismo no Brasil.
Voei cedo, dormi mal. Ela se sentou à mesa e, de forma rápida e incisiva, me perguntou se tínhamos, enquanto país, a exata dimensão do que seria adotar, irresponsavelmente, um parlamentarismo em uma realidade cujos partidos parecem tão frágeis nacionalmente. Aguardei sua fala e, dentre outras coisas, fiz uma observação singela: “tenho a sensação de que você fala comigo como se quisesse corrigir minha defesa do parlamentarismo. Eu não vou dizer o que acho do regime, mas nunca o defendi de forma enfática. Isoladamente, ele não responde por absolutamente nada e, seguramente, não funciona como alternativa fácil a um desafio político complexo”. Aliviada, nos envolvemos numa ótima conversa sobre o que sustenta um sistema dessa natureza. A primeira conclusão: a política precisa ser vista de maneira plural, como algo estratégico, de forma a ser legitimada pela sociedade. Ademais, partidos políticos precisam ser estruturados e reconhecidos, o que provavelmente ocorre a partir do momento que damos suporte à democracia enquanto valor.
O cargo de primeiro-ministro é menos uma construção estratégica individual e mais o resultado de algo que emerge de articulações intrapartidárias, que formam coalizões e ascendem ao poder. O chanceler é uma consequência, um resultado de grandes combinações, e não um fim em si mesmo. Ele, inclusive, em tese, abdica de suas ideias pessoais em nome de um tratado coletivo. Isso é emblemático, e diz pouco demais sobre os tempos que estamos vivendo. O individualismo de hoje, o “mundo em selfie”, é mais afeito às narrativas de sucesso pessoal. E o tom de tal história vai depender do país que vivemos e da cultura sob a qual estamos imersos. A narrativa comum no Brasil, por exemplo, é a do mito. Um super-herói, o salvador da pátria que precisa ser construído para se transformar em bons posts contra tudo o que está aí. O like precisa ser convertido em voto. E, como o login é meu e posso investir nele, basta criar um bom roteiro para que eu me transforme em influencer e alimente meu ego. Associar a isso uma carreira política é muito fácil ao sabor dos sonhos e das frustrações da atualidade.
Se tudo isso for verdade, estamos imersos no paraíso do egoísmo absoluto. A diferença para o passado? A exacerbação e a transformação de tal egolatria em estilo de vida e negócio. Ninguém vai dizer que “somos”, em primeira pessoa, no Brasil, de tempos recentes para cá. Se você estiver nesse time, sugiro a leitura de “Fronteiras da Europa”, capítulo de Raízes do Brasil, em que o autor diz que descendemos de uma Ibéria secularmente em primeira pessoa.
Mas vamos ao trecho de um texto do The Economist, traduzido para o portal do Estadão, em 8 de julho, que mostra algo já tratado aqui em perspectiva mais global: “Boris Johnson viciou o seu partido em soluções imediatas para problemas intratáveis. E a desintoxicação vai durar anos. (…) Muitos conservadores confundiram suas obsessões pessoais com prioridades do eleitorado.” Percebe? Estamos diante de um fenômeno de proporções mundiais. Troque Boris por Donald, substitua Trump por Bolsonaro. Vai dar na mesma coisa. Faz alguns anos, durante uma das bem-sucedidas tentativas de manutenção do CDU no poder alemão, li uma reportagem no Estadão sobre a campanha dos democratas-cristãos, que estavam investindo na figura pessoal de Merkel. Nota? Até mesmo na terra coletiva, os predicados individuais passaram a fazer mais sentido. E quais as soluções imediatas? Aqui, é colocar mais Deus no Estado laico, combater o comunismo, armar o cidadão etc. Obsessões pessoais, mito da selfie e anos de desintoxicação.
Em 2008, eu me envolvi em campanhas eleitorais. De certa forma, o que vivi, em algumas poucas dezenas de suportes a candidaturas, foi mais impactante do que toda a minha formação acadêmica. No ano seguinte, em Portugal, fui apresentado a um profissional de marketing político, que me narrou a diferença entre nós dois: “você trabalha para pessoas, eu trabalho para um partido”. Ele tinha razão. Em 2010, eu já havia desistido desse negócio que considero tenebroso, mas fico pensando: e ele? Será que a lista fechada parlamentarista portuguesa resistiu à exacerbação do individualismo enquanto fenômeno político? Na Espanha bipartidária de algumas décadas atrás, assistimos ao fortalecimento de um conjunto maior de partidos com base em narrativas descoladas e disruptivas. E o que ocorreu? De forma simplificada e quase irresponsável: o país flertou com a lógica do ingovernável. O imediatismo como resposta nos faz uma sombra alucinante, as obsessões pessoais douradas, com base em trajetórias individuais, nos contaminam. Raros são os políticos que conseguem nos convencer de planos coletivos, complexos e de longo prazo. Até quem jura ser diferente cai facilmente em falácias ególatras.
A chave está dada. Estamos diante de alguns sinais que precisam ser considerados. Mas um velho problema nos assombra aqui: elegemos seres em primeira pessoa, cremos no caráter positivo disso e dependemos, sem saber, que eles se tornem politicamente coletivos para o sistema funcionar. Não vejo saída. E não me traga respostas fáceis e banais, como a sua reforma política de estimação. Atenção a um ponto que me inspira no artigo da The Economist: “a desintoxicação vai durar anos”. Lula e Bolsonaro, dois símbolos individualistas, somam, em julho de 2022, quase 80% do eleitorado em primeiro turno. Alternativas viáveis não existem, e são construídas sob o mesmo teor egoísta. Ciro vive isolado em suas alucinações agressivas. Tebet nem sequer consegue unificar seu partido. Para o parlamento, o mais coletivo dos poderes, continuamos a eleger narrativas individuais despreparadas, que procuram “o partido mais fácil pra se eleger” em cálculos singulares. Sujeitos que exploram o terror para se venderem como calmantes. Procuro aqui o nome da deputada alemã, para retomarmos aquela conversa. Desisto. Não será a partir disso que enfrentaremos algo infinitamente maior do que nós. A política, como resultado coletivo, virou um conglomerado de partes que se vendem e se acham maiores que o todo. E o todo, representado pela política como o resultado do possível e maior que a soma das partes, parece se esfarelar.
Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.