É interessante perceber que tanto maio de 1968, na França, como junho de 2013, no Brasil, são acontecimentos políticos descritos por datas. Por quê? Será que esses acontecimentos históricos são apresentados a partir de datas para que sejam contingentes? É, de fato, curioso que tanto o maio francês como o junho brasileiro sejam denominados como “jornadas” ou “eventos”. Parece-nos que esses termos revelam um desejo de deixar o passado sem historicidade, ou seja, de afirmar que foram momentos passageiros e fugazes que produziram retrocesso histórico. O que é comum tanto a maio de 1968, na França, como junho de 2013, no Brasil, é que ambos têm narrativas interpretativas que procuram esvaziar o processo eminentemente político dos acontecimentos. Isso é ainda mais explícito quando observamos que diversas interpretações sobre os dois acontecimentos apresentam os processos políticos sob rótulos de heroísmo e vilania. Como se a leitura do que nos resta desses movimentos tivesse de passar, obrigatoriamente, pelo julgamento moral sobre os heróis ou vilões que causaram mais mal do que bem às sociedades em que aconteceram.
Dessa forma, as interpretações sobre maio de 1968 e junho de 2013 assumem um caráter maniqueísta e anacrônico. O segundo passa a ser considerado ou o movimento responsável pela eleição de Bolsonaro e o ovo da serpente que germinou o fascismo ou, por outro lado, como um momento de grande encontro cívico festivo brasileiro. Assim como também o primeiro é apresentado como ou um momento de profunda ruptura com o capitalismo fordista ou como o evento que forjou o neoliberalismo. Essa última interpretação de maio de 1968, por exemplo, tornou-se hegemônica nas ciências sociais a partir do livro O novo espírito do capitalismo, escrito por Boltanski e Chiapello[1]. Os autores, 31 anos depois de maio de 1968, argumentam que a ideologia neoliberal é herdeira direta daquela época. Assim, o evento assume definitivamente o caráter de movimento burguês individualista que preparou o triunfo da racionalidade neoliberal.
O filósofo francês Balibar[2] ironiza com esse raciocínio e afirma: “(…) será que eu conto para esses autores que o neoliberalismo é, em grande, parte produto de uma contrarrevolução em reação aos movimentos de 1968? (…) Sem dúvida, portadores de ideias “libertárias” podem passar da esquerda para a direita, mas é preciso muita transformação para se passar da autonomia operária para a seleção pela concorrência individual. E isso não aconteceu em maio de 1968”.
Junho de 2013 também é acusado de parir o fascismo bolsonarista, seja porque (para alguns) promoveu manifestações da classe média conservadora, seja porque teria sido responsável pela produção do “antipetismo”. Nessas interpretações dos “eventos”, os movimentos sociais do maio francês e do junho brasileiro foram considerados vitoriosos. Os dois teriam conseguido lograr aquilo pelo qual foram criados: a vitória do individualismo neoliberal e a vitória da antipolítica fascista. No entanto, essas interpretações parecem contradizer aquilo que os protagonistas e os partícipes dos “eventos” narram e o que as pesquisas sobre os “acontecimentos” revelam[3].
O que parece claro é que a interpretação tanto de maio de 1968 como de junho de 2013 foi arrancada dos que participaram e protagonizaram os “eventos”, atribuindo aos contramovimentos de ambos as versões que se tornaram vencedoras e hegemônicas[4].
Deluchey[5] aponta que, depois dos eventos de insurreição, como os 1968 e 2013, precisa-se pôr um fim na “desordem”, reinscrevendo as relações de disputa política, como disse Foucault, nas instituições, nas desigualdades, na linguagem e nos corpos dos indivíduos. Por isso, diz Deluchey[6] ser fundamental descrever os estudantes de 1968 (e 2013) como vencedores dos “eventos” para que a ordem hegemônica possa se reinventar, contando que foram a partir das turbulências que se capturou com maior eficiência o espírito do tempo. Christian Laval[7] também aponta que a “vitória” dos estudantes de 1968 apenas foi apresentada para adotar um pacote de medidas que, na realidade, eram contrárias a todas as reivindicações dos estudantes e operários em luta.
Aqui, no Brasil, junho de 2013 segue em disputa interpretativa. A questão para muitos protagonistas e partícipes do “evento” é não deixar que as próprias pautas, reivindicações e demandas sejam tomadas ou interpretadas pelos contrainsurgentes, como os movimentos bolsonaristas e neoconservadores. A questão é que se a “velha” ordem (ou repúblicas) precisava ser reinventada a partir das inovações políticas trazidas por 1968 e 2013, ao mesmo tempo já estava pronto, à espreita, um ataque reacionário que se aproveitou do momento de ruptura para impor seus ditames de modernidade ao modo da velha França rural do pós-guerra ou do Brasil agrário da Primeira República.
Assim o boi, a bala e a bíblia[8] espreitavam uma oportunidade de sair e impor versões e narrativas. Assim como a Quinta República francesa aproveita de 1968 para se modernizar numa versão autoritária, mas que se apresenta como arauto da liberdade. Dessa forma, o anti-1968 e o anti-2013 ganharam. A captura dos significantes “liberdade”, “democracia”, “igualdade” e “política” pela direita — além da ausência de diálogo entre os movimentos sociais “horizontais” e “verticais” e da desconfiança do poder institucional em relação aos movimentos estudantis e sociais e destes em relação às instituições — demonstra que 2013 não foi vitorioso. Assim como 1968 não o foi.
O que esses movimentos contrainsurgentes nos revelam é que a suposta presunção teológica do fim da história, elemento da gramática reacionária, é imensamente falsa e tem como objetivo gerar a impotência política e o descrédito da possibilidade de mudança social. Assim, temos, desde o século 18, os argumentos de que nada adianta a luta, já que o movimento de ordem é da natureza e da ordem universal das coisas.
Em 1940, Walter Benjamin[9], em seu texto “Sobre o conceito de história”, nos diz provocativamente que, assim como o futuro não é o fim brilhante do tempo, o passado não é o lugar perdido e inacessível que, normalmente, pensamos que seja. É sobre o que geralmente denominamos passado que há incessante disputa política. Enfim, caso aceitemos o encurtamento de horizonte das teologias do fim da história, vamos, continuamente, destruir as possibilidades de transformações social e política. Vamos aceitar que a desigualdade seja um fato e que não há nada a ser feito. Com isso, inclusive, vamos contribuir para que não consigamos conversar com as novas gerações, alimentando o conformismo e o adaptacionismo.
Precisamos ampliar a nossa imaginação política e despertar para o fato de que essa nossa suposta impotência é construída, uma farsa cuidadosamente elaborada e alimentada para nos fazer aceitar o inaceitável.
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