Mars One foi um projeto criado em 2001 pelo engenheiro holandês, Bas Lansdorp, para instalar uma colônia humana permanente no planeta Marte e ocupá-la a partir de 2030. A ideia-base do projeto era que uma missão tripulada a Marte seria viável hoje com custos moderados (US$ 6 bilhões para a primeira fase), usando tecnologias existentes – desde que se elimine a etapa do retorno, isto é, que as viagens sejam só de ida.
Em Marte um – filme de Gabriel Martins que narra as dificuldades e sonhos de uma família de Contagem, Minas Gerais, no ano de 2018 –, Deivinho, filho caçula de seu Wellington e dona Tércia, sonha em participar do projeto aeroespacial. Graças a Alyssa Carson [1] e Neil de Grasse Tyson [2], Deivinho se imagina astrofísico e constrói telescópios caseiros com material descartado no lixão. No entanto, há outros sonhos sonhados para Deivinho, bem distintos dos dele: o seu pai sonha em ver o filho como jogador de futebol do time do Cruzeiro.
No fim do longa-metragem, Deivinho ensina ao pai que a vida onírica dá lições de política e que as questões centrais do amor familiar e da solidariedade social passam pela liberação de possibilidades de sonhar. Deivinho explica didaticamente aos espectadores que os sonhos não têm origem em si mesmos, mas pela existência inteira do mundo, como um outro que nos indaga sobre a nossa própria existência. Este momento final do filme Marte um me remete a uma fala de David Kopenawa [3] que afirma que os sonhos são para os Yanomami o lugar, por excelência, da diplomacia, onde se entra em contato com outros seres, com quem se estabelecem diálogos, relações e mediações.
O sociólogo francês Bernard Lahire [4] nos ensinou que o sonho é uma realidade individual intrinsecamente social, resultado de disposições e esquemas incorporados, mas que depende do contexto de criação, como toda produção social. Nossos sonhos são encontros, expressões de questões envolvidas na situação existencial em que o sujeito é levado a assumir uma posição. Nos nossos sonhos, conscientes ou não, se abrigam os nossos diálogos, as nossas frustrações, o nosso mundo comum tal como o vivenciamos particularmente. Como afirmam Perrone e Gurski [5], nossas incursões oníricas são também o documento psíquico de uma sociedade em uma determinada época.
E qual seria o pesadelo para Deivinho na cosmologia Yanomami? Seria a impossibilidade de mediações e diálogos, isto é, a impossibilidade tanto de dormir quanto de sonhar. Neste sentido, tanto para Deivinho como para os Yanomami, os inimigos da mediação e dos sonhos parecem ser os mesmos.
No dia 15 de março de 2023, o Ibama e a Polícia Federal apreenderam antenas e diversos terminais da empresa Starlink em garimpo ilegal na terra Yanomami. Será que o sistema de internet de alta velocidade da Starlink tem sido utilizado pelas mineradoras e garimpeiros para a coordenação de ações contra os indígenas? Ora, a empresa de internet banda larga Starlink é um braço da SpaceX, propriedade do bilionário sul-africano-canadense-estadunidense Elon Musk. Mas o que Musk, Starlink, SpaceX ou Mars One têm a ver com garimpagem ilegal em reservas indígenas brasileiras?
Elon Musk se encontrou com Bolsonaro em 20 de maio de 2022 para discutir “conectividade” e “proteção da Amazônia”. Em janeiro, a Anatel concedeu o direito de exploração no Brasil de satélite estrangeiro não geoestacionário de baixa órbita para a Starlink. Com isso, a empresa vai poder explorar o território brasileiro até 2027. A Starlink parece anunciar, tanto para as colônias extraterrestres como para as terrestres, uma declaração de intenções na qual bilionários, como Musk e Bezos, devam controlar a infraestrutura da nossa vida cotidiana e expandir seus poderes sobre o sistema solar inteiro. Estes herdeiros barões do espaço ganharam bilhões por meio da exploração de seus funcionários e da extração ilimitada de recursos naturais. Quando escavamos suas ideias para um futuro no espaço, fica explícito que eles buscam estender a sua ânsia de exploração para o cosmos.
Durante a pandemia de covid-19, Musk tentou enquadrar a fábrica da Tesla como um “serviço essencial”, desafiando as ordens sanitárias. E a Amazon de Bezos negou aos funcionários o necessário distanciamento social, como também negou equipamentos de proteção adequados, enquanto a riqueza da empresa aumentava em US$ 30 bilhões. No Brasil, famílias como a de Deivinho tinham de lidar com o desemprego, que saltou para uma taxa recorde de 14,4% em agosto de 2020 (Pnad, IBGE, 2020). Em Roraima, mais de 20 mil garimpeiros invadiram o território dos povos indígenas, trazendo uma avalanche de violência, assassinatos, estupros e violações de direitos humanos.
A riqueza de Musk foi construída durante o apartheid da África do Sul: o papai era engenheiro e dono de parte de uma mina de esmeraldas na Zâmbia. O papai de Bezos, que investiu quase US$ 250 mil na Amazon em 1995, era um rico engenheiro de petróleo em Cuba enquanto o ditador Fulgêncio Batista estava no poder. Que sonho é esse que busca preservar a violência do genocídio indígena e a exploração dos recursos naturais e humanos nas periferias mundiais?
O pesadelo de Elon e Jeff, e de todos os herdeiros, seriam que os Deivinhos e os Yanomami sonhem os próprios sonhos, criando as próprias mediações e os próprios diálogos com a realidade social. Elon e Jeff têm, de fato, este privilégio: os sonhos deles se realizam graças aos Deivinhos e aos Yanomami.
Ora, se os sonhos dos Deivinhos e dos Yanomami parecem impensáveis numa realidade social que os constrangem nos seus devires, os sonhos de Elon Musk têm uma concretude assustadora, tanto para os Deivinhos como para os Yanomami.
O fato de os limites do capitalismo predatório não obedecerem aos limites da atmosfera não quer dizer que Deivinho não possa sonhar com o espaço. A investigação do espaço é de interesse coletivo da humanidade, assim como o conhecimento e a preservação dos povos tradicionais. A questão é que esse espaço somente será possível se o projeto colonial cessar, seja sobre corpos, seja sobre territórios, seja sobre ou sonhos.
A Amazônia e a Via Láctea têm isto em comum: são terras de sonhos. Presos como estamos na cosmologia ocidental colonialista, costumamos considerar os modos de sonhar de Deivinho e dos Yanomami como folclóricos, em vez de compreendê-los como projetos de possibilidades factíveis e necessárias de reencantamento do mundo. Não enxergamos o quão insana e irracional é a sanha acumulativa e destrutiva dos bilionários colonialistas, tampouco conseguimos nos comover quando recebem uma quantidade gigantesca de verbas e concessões governamentais extraídas do labor comum dos colonizados.
O problema, finalmente, é que não temos sonhado. Como se o nosso próprio inconsciente fosse expropriado pelos herdeiros mimados para que possam viajar a Marte ou controlar a Amazônia e os povos e comunidades que ali vivem. Nossa capacidade onírica, assim como a política, tem sido esvaziada. E quando isso acontece, o interesse particular de um homem individual, como Musk, impõe-se como universal ao sonho possível do homem plural, na periferia de Contagem ou nas reservas indígenas. Esse universal falso é a proposta fatídica da destruição do que nos une. E não há futuro (nem mundo) comum sem a retomada dos sonhos dos Deivinhos e dos Yanomami.
[1] Jovem norte-americana de 18 anos que tem treinamento e certificação para fazer experiências espaciais e seu maior sonho é pisar em Marte.
[2] Neil de Grasse Tyson é um astrofísico, escritor e divulgador científico norte-americano.
[3] KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
[4] LAHIRE, Bernard. L’interprétation sociologique des rêves. Paris: La Découverte, 2018.
[5] PERRONE, Cláudia; GURSKI, Rose et. al. (orgs.) Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempo de pandemia. São Paulo: Autêntica, 2021.
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