Artigo

Mídias Sociais para a democracia e para a barbárie

Helga de Almeida
é doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e do PPGCP da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Helga de Almeida
é doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e do PPGCP da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Desde a segunda metade do século 20 se fala que a democracia no Ocidente estaria vivendo uma crise. Essa crise teria a ver com as promessas não cumpridas deste sistema de governo (PEREIRA, 2012) que passou de aspiração revolucionária no século 19 para um slogan vazio de conteúdo no século passado (SANTOS; AVRITZER, 2002). É que muito se esperançava em relação às possibilidades da democracia representativa e das construções que viriam do relacionamento dos representantes políticos com os cidadãos representados. Especialmente em relação aos parlamentares e eleitores, esperava-se mais harmonia (URBINATI, 2006) entre as demandas cidadãs e o que era defendido na tribuna, além de mais accountability nos mandatos e mais responsividade com a coisa pública.

O ponto é que a percepção pública geral, a partir de meados do século 20, é de que isso não ocorreu; pelo contrário, a sensação é de que representantes se encontravam distantes dos representados.

É neste cenário, na década de 1980, é que surge a internet de massa, num contexto no qual, mais uma vez, expectava-se de que dali sairiam ferramentas para a construção de relações mais próximas entre representantes e representados. Sem dúvidas, a partir daquele momento, muita coisa aconteceu – e, de fato, as tecnologias digitais foram absorvidas na política e, hoje, são meios cruciais para a comunicação dos legisladores.

Na semana que passou, a Diretoria-Executiva de Comunicação e Mídias Digitais da Câmara dos Deputados publicou uma pesquisa sobre a presença dos parlamentares eleitos para a 57ª Legislatura (2023-2027) nas mídias sociais. O levantamento mapeou a presença no Facebook, Instagram, Twitter, YouTube e TikTok, cujos resultados impressionam. Se, em 2018, 98,1% dos parlamentares estavam no Facebook; 96,7%, no Instagram; 78,4%, no Twitter; e 44,8%, no YouTube; em 2022, 96,1% dos parlamentares estavam no Facebook; 98,4%, no Instagram; 82,1%, no Twitter; e 63,2%, no YouTube – 42,9% já estavam no TikTok.

Tabela. Presença nas mídias sociais de deputados federais eleitos para a 57ª Legislatura, 2023.

Fonte: elaboração da autora com base no relatório “Deputados e redes sociais”. 57ª Legislatura. Câmara dos Deputados. Diretoria-Executiva da Coordenadoria de Registros e Informações Processuais (Direx/Corip).

Chamo atenção aqui para o esforço dos parlamentares de se fazerem presentes, inclusive em redes sociais digitais criadas recentemente, como o TikTok, criada em 2016 e que compreende um amplo público jovem.

Enfim, os ganhos informacionais em usar as mídias sociais para publicizar os mandatos legislativos são muitos para os próprios parlamentares e para a sociedade civil. Por meio das redes, os cidadãos têm acesso rápido e em uma linguagem simples, por vezes imagética e memética, sobre os feitos de seus legisladores. Já políticos podem mostrar as próprias ideias e feitos sem a mediação dos meios midiáticos tradicionais. Para ambos, há os ganhos da comunicação direta e a possibilidade de se estabelecer um relacionamento direto.

Se, por um lado, há um amplo espectro de boas possibilidades colocadas para jogo no que se trata do uso das mídias digitais por legisladores, por outro, há aqueles que têm utilizado seus canais estrategicamente para a desinformação e para pautar debates não democráticos. O caso do Nikolas Ferreira, deputado federal de extrema direita, é paradigmático para se entender como um político profissional pode usar as ferramentas disponíveis nas mídias digitais para o ignóbil. Nikolas é uma das figuras públicas que, no vácuo deixado pela saída de Bolsonaro da política, tenta ocupar um lugar na liderança da extrema direita brasileira. Para tanto, usa as mesmas estratégias metalinguísticas nas redes sociais de sua linhagem ideológica: o bolsonarismo. São elas: i) estabelecimento de fronteira antagonística entre amigo e inimigo; ii) equivalência entre povo e líder; iii) mobilização permanente de ameaça e crise; iv) espelhamento do inimigo e inversão de acusações; e v) produção de um canal midiático exclusivo, que faz com que uma realidade à parte seja criada (CESARINO, 2020).

No 8 de março, por exemplo, o deputado, mais uma vez, encenou o seu decrépito teatro a fim de ganhar cliques e esvaziar o significado da data no Congresso Nacional. Em plenário, ele colocou uma peruca loira de cabelos longos e disse: “Hoje, me sinto mulher, deputada Nikole, e tenho algo muito interessante para falar. As mulheres estão perdendo o seu espaço para homens que se sentem mulheres” [i], em uma suposta referência às mulheres trans. A lamentável fala foi reverberada nas mídias sociais do legislador e fez com que ele ganhasse milhares de novos seguidores [ii].

A estratégia de uso massivo de desinformação na comunicação política utilizada pelo nobre (ou nem tão nobre assim) deputado é um fenômeno global, percebido principalmente na direita radical. E aqui voltamos ao começo do texto.

É exatamente a desconfiança quanto à democracia e às instituições democráticas – como a imprensa, a política, as instituições educacionais e até a sociedade civil – que levam que cidadãos normais escutem e acreditem em figuras como Nikolas Ferreira. A lógica se constrói da seguinte maneira: com a quebra da autoridade das instituições democráticas e o crescimento de canais alternativos de informação, que, segundo BENNET e LINVINGSTON (2020), produzem mitologias políticas populares e mobilizam cidadãos a se juntarem e apoiar movimentos e partidos fora do centro (e especialmente à direita), há uma demanda crescente por informações alternativas e também por uma liderança que explique como as coisas ficaram tão “fora de ordem” (BENNET;  LINVINGSTON, 2020). E é aí que a extrema direita desinformacional faz sucesso.

Em resumo, a desconfiança em relação à democracia gerou uma corrida para a busca de canais de comunicação capazes de colocar representantes e representados em maior proximidade. O problema é que os mesmos canais usados para a democracia também têm sido usados para a barbárie.

Bibliografia

BENNETT, W. L.; LIVINGSTON, S. (2018). “The disinformation order: disruptive communication and the decline of democratic institutions”. European Journal of Communication, v. 33, nº 2, págs. 122-139, 2018.

PEREIRA, M. A. (2012). “O que a internet tem a ver com as promessas não cumpridas da democracia?”. Trabalho apresentado no 8º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Gramado, Brasil.

SANTOS, B. S.; AVRITZER, L. (2002). “Introdução: para ampliar o cânone democrático. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa”, págs. 39-82, 2002. URBINATI, N. (2006) “O que torna a representação democrática?”. Lua Nova. 2006, nº 67, págs. 191-228.


[i] https://www.poder360.com.br/congresso/nikolas-ferreira-faz-discurso-transfobico-no-dia-da-mulher/

[ii] https://extra.globo.com/politica/noticia/2023/03/nikolas-ferreira-ganha-46-mil-seguidores-apos-fala-transfobica-aumento-so-fica-atras-da-posse-de-8-de-janeiro-25673072.ghtml

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