O Regimento Interno que regula o comportamento parlamentar nas Casas legislativas brasileiras é uma referência que frequentemente é deixada de lado quando há consenso. A lógica é simples: todos ali gozam da legitimidade do voto e de autonomia para definir as próprias regras de organização e funcionamento internos. E, porque a Casa é autônoma, questões procedimentais internas devem ser resolvidas internamente, motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal costuma responder que não é de sua alçada julgar impasses internos, porque são questões interna corporis. Ou seja, não caberia a um Poder intervir nas regras internas de decisão de outro Poder. A exceção se daria nas regras contempladas na Constituição Federal de 1988, claro.
Um dos debates mais consolidados entre os teóricos do liberalismo político e que se traduziu em instituições nas agremiações que entendemos por Estado moderno é o da necessidade de distribuir o poder para evitar que a concentração prejudique o cidadão. Um dos resultados institucionais da consolidação desse princípio é a divisão de Poderes, mas a máxima de que só outro Poder pode controlar o poder pode ser extrapolada para outros tipos de organização política como, por exemplo, questões internas à Câmara dos Deputados. As principais arenas definidas regimentalmente para contrabalancear o poder do Plenário na Câmara dos Deputados são as comissões permanentes, e os principais atores a quem cabe limitar o poder do presidente da Mesa e do próprio presidente da República são os líderes dos partidos políticos. Tanto as comissões quanto os partidos sofreram modificações desagregadoras que contribuíram para o processo de centralização de poder nas mãos de Arthur Lira na atual Legislatura.
As comissões permanentes são espaços em que são analisadas proposições a partir do critério temático. A tendência é que o conhecimento especializado tenha espaço para alcançar o processo legislativo nessas arenas, por parlamentares, servidores da Casa, especialistas ou outros membros da sociedade civil. O Regimento Interno de 1955 estabelecia 12 comissões temáticas, e esse número não foi muito diferente desde 1826. Já em 1972 foram estabelecidas 16 comissões. Atualmente, são 25. Para comportar tantas arenas, surgiu inclusive uma nova regra, que possibilitou que algumas comissões possam ser “secundárias”, isto é, que possam ser compostas por parlamentares que já integram outras. O argumento de que a complexificação da realidade contemporânea é o que fundamenta tal aumento não parece pouco razoável.
Cabe observar, no entanto, que há uma coincidência do aumento com a fragmentação partidária e aumento do número de ministérios. A atual Legislatura começou com 30 partidos com representação na Câmara. Nesse ponto, é muito difícil estabelecer relações de causalidade. Essa realidade mais complexa pode ter resultado tanto no aumento de partidos quanto no número de comissões. Não há dúvidas de que o incentivo institucional tem papel importante no quadro atual, isto é, o período em que a regra estabelecia uma relativa facilidade para criação de novos partidos com direito a recursos. Essa regra já mudou, e algumas novas regras em relação à cláusula de desempenho tendem a reduzir o número de partidos com representação.
Independentemente do motivo que resultou na fragmentação partidária e do sistema de comissões, a multiplicação dos atores com poder de veto dificultou a governabilidade e deu mais peso às decisões do presidente da Mesa sobre questões conflituosas em relação à aplicação do Regimento Interno. Sem nenhum agente externo que possa garantir a aplicação da regra e com menos atores e arenas que, sozinhos, possam contrabalancear, o que vemos hoje é uma forte concentração de poder nas mãos do presidente da Mesa e maior grau de conflito em relação às normas não escritas. Atingir consenso sem atores relevantes para decidir sobre isso é quase impossível. Um dos resultados disso foi a modificação da tramitação do orçamento que tornou o processo menos transparente. Seria preciso pensar em um órgão colegiado com participação formal para avaliar as situações de questionamento sobre aplicação da norma. É preciso restabelecer o contrabalanço no exercício do poder na Câmara dos Deputados.
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