Defesas de doutorado ou mestrado servem para que vaidades e competências se encontrem e utilizem um trabalho – tese ou dissertação – em nome de suas percepções. Quanto mais tensa uma defesa, maior a intolerância dos arguidores ou a incapacidade do estudante e de sua orientação em trabalhar sobre um tema. O equilíbrio entre a vaidade do arguidor e sua excelência técnica, o brilhantismo do trabalho ou sua mediocridade é algo difícil de ser obtido.
Já participei de bancas e sempre me pego nisso. O que é a voz de minha vaidade e intolerância e o que, de fato, merece críticas? O que é fundamental ao candidato e o que é recado, conflito e autoafirmação do componente da banca? Pois não adiante dizer: “eu não teria feito deste jeito”. Isso é óbvio. O arguidor não escreveu a peça. Tivesse feito exatamente como espera e seria o arguido ou o orientador. Mas vamos em frente. Esse não é meu tema central.
Dias desses, numa banca de doutorado extremamente edificante e, de fato, interessante no campo da Educação, um professor fez da sua fala uma verdadeira aula. Aprendemos muito nesses instantes, sobretudo quando estamos diante de pessoas brilhantes e dispostas a colaborar. O professor Alexsandro Santos, hoje presidente da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, é um desses agentes. E trouxe a seguinte reflexão: “não existe ‘apatia política’ no Brasil. O sentido do termo não permite que afirmemos isso de maneira alguma”.
Eu estava ouvindo, entretido, mas não consegui desobedecer a uma certa desordem corporal, que me pegou de assalto. Me arrumei na cadeira e balancei a cabeça, como fazem os bichos para tentar “pegar no tranco” depois de serem impactados por algum abalo físico. Em resposta, fui imediatamente atrás do sentido da palavra “apatia”, enquanto Santos avançava ainda mais na genialidade de seu argumento. Pouco importa o que estávamos debatendo. Vamos lá:
Apatia: para os céticos e os estoicos, estado de insensibilidade emocional ou esmaecimento de todos os sentimentos, alcançado mediante o alargamento da compreensão filosófica. Estado de alma não suscetível de comoção ou interesse; insensibilidade, indiferença.
Dá para falar em apatia a partir da realidade política no Brasil? Em termos de natureza e das definições sociológicas sobre o brasileiro, sequer daria para falar em apatia num povo alegre, agressivo, criativo, egocêntrico, intenso e protagonista. Já usei o termo “apatia política” em textos, já li muito sobre ele impresso em reflexões de diversos colegas. Normalmente, o utilizamos para descrever volumes de votos brancos, nulos e abstenções.
Erramos. Ao menos, em parte. Não comparecer, votar em branco ou firmar um 99 ou 00, por exemplo, na urna eletrônica, em alguma medida, pode até ser apatia. Seria, a partir da ideia que Santos nos trouxe na banca, se fosse resultado de algo como “tanto faz, não faz diferença alguma, dá na mesma”, de maneira neutra, murcha, apagada, desinteressada, insensível e indiferente. Assim pode até fazer sentido.
Mas não é essa a sensação que temos no Brasil. Raramente, somos indiferentes a algo. Basta ver o que fizemos das redes sociais. O brasileiro era o terceiro povo que mais usava as redes sociais no mundo em 2019, de acordo com pesquisas do Hootsuite e do WeAreSocial. E lá sabemos bem como somos a antítese do apático, criando milhões de especialistas intensos em qualquer tipo de coisa em segundos. Com a POLÍTICA não é diferente, pelo contrário.
Desde o atual e emblemático #nãomerepresenta de 2013, capaz de expressar sentimentos negativos que pesam sobre a democracia mais tradicional desde os anos 90, andamos bicudos com a política. E, de poucos anos para cá, sentimos ainda mais intensamente o “nada presta”, o “tudo é muito ruim”; e fomos às ruas, de todos os lados do espectro ideológico, criamos fumaça, fizemos movimento, esbravejamos, litigamos, enfrentamos, batemos e apanhamos.
Junte esses verbos. Rompemos relações familiares, fomos presos em bolhas virtuais, terminamos amizades, disseminamos absurdos, bloqueamos, “tretamos”, “mitamos”, “lacramos”, causamos e “brocamos”. Junte mais esses verbos. E, quem sabe, depois de ler um pouco a obra de Manuel Castells sobre esses fenômenos políticos pelo mundo, diga: odiar seu tio porque ele é conservador, é um gesto de apatia? Evitar o convívio com sua sobrinha porque ela é progressista, é ato apático? Estamos supersensíveis em termos emocionais, comovidos e intolerantes. E odiamos ouvir que, para a crise política, somente mais política. Isso não é apatia, é certeza de imersão num problema sem solução. Será?
Solução existe. Mas é como imaginar que trato a intoxicação com doses adicionais de veneno? Precisamos nos introduzir o vírus inoculado da política, para que, democraticamente a fortaleçamos, respeitemos, cobremos, construamos e, assim, avancemos. Apatia política é marginal, me parece muito distante de explicar o atual afastamento radical, resultante de uma crise que já dura cerca de 30 anos, sobretudo na realidade brasileira.
Assumamos: o que criamos pela política foi ódio, e não apatia. Votamos assim, debatemos assim e assim nos comportamos, pagando preço caro por isso. Não? Responda. E tenho certeza de que, diante de uma provocação desta, a probabilidade de termos gerado apatia no leitor é mínima. Está vendo?
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