O presidente da República, mediante petição assinada apenas por ele mesmo, ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.764, de 19 de março de 2021), buscando a declaração de inconstitucionalidade de decretos dos governadores do Distrito Federal (DF) e dos Estados da Bahia (BA) e do Rio Grande do Sul (RS), por meio dos quais foi determinado, naqueles locais e naquele momento, o fechamento total e toque de recolher em virtude da pandemia. Alegou não caber aos entes federados restringir o funcionamento de atividade econômica não essencial (ao seu sentir atividade exclusiva do Executivo nacional) e serem desproporcionais as providências. Duas características desta demanda judicial merecem destaque.
Em primeiro lugar, este novo processo, a despeito de supostamente aparentar defender liberdades individuais e econômicas, buscava, em sua essência, retirar daqueles governadores (e centralizar na União) a prerrogativa de decidir, regional e localmente, sobre a intensidade de medidas sanitárias restritivas de circulação de pessoas e sobre as definições da essencialidade de serviços que continuariam a funcionar, num momento em que se registrava um viés de alta nos índices de internamentos e de óbitos naquelas localidades.
Entretanto, o Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) já havia decidido de maneira contrária à pretendida centralização na União e protegida a competência suplementar dos entes federados, para legislar e adotar medidas sanitárias de combate à epidemia internacional, especialmente diante de situações de omissão do governo central, a prejudicar o equilíbrio federativo e a continuidade de necessárias políticas públicas (ADI 6.341, de 15 de abril de 2020). Neste julgamento, ficou claro e expresso que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, o presidente da República poderia dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e as atividades essenciais. Em suma, contrariamente ao divulgado pelo presidente, a Corte não lhe retirou poderes para agir em favor do combate à pandemia, mas garantiu que Estados e municípios pudessem agir em seu lugar, em momentos de deliberada omissão e de desejos de centralização autoritários e negacionistas (**). Uma expressiva e sentida derrota do governo.
Também chama a atenção o fato (incomum) de a petição de ADI não vir assinada em conjunto com o advogado-geral da União, com o ministro da Justiça e/ou com qualquer dos procuradores da Advocacia-Geral da União (AGU), a quem compete, por dever de ofício, a representação em juízo dos interesses da União e do próprio presidente, quando relativos ao exercício de seu cargo. Tal condição é, no mínimo, indício de desconforto do quadro técnico-jurídico do Poder Executivo, com a insistência do próprio presidente em questionar judicialmente medidas que lhe desagradem e incomodem sua base de apoio, pois se tratava de matéria já decidida pelo colegiado do Tribunal, que poderia expor negativamente o excelente quadro técnico da Advocacia da União perante a Corte e o restante da comunidade jurídica.
Embora não haja consenso na literatura e em precedentes do próprio STF sobre a validade de ações diretas de inconstitucionalidade apresentadas isoladamente pelo presidente e por governadores, sem a presença dos respectivos advogados públicos (questão relativa à capacidade postulatória), o ministro Marco Aurélio Mello, então relator deste segundo processo, utilizando de suas prerrogativas de relator, preferiu encerrar prematuramente a tramitação do processo por este defeito formal (ausência de advogado), sem, contudo, deixar de mencionar em sua decisão a existência de um condomínio, integrado por todos os entes federativos, voltado a cuidar da saúde e da assistência pública, no qual caberia ao presidente a liderança e a coordenação de esforços visando ao bem-estar dos brasileiros, e não à defesa da centralização decisória em prol de posicionamentos pessoais do incumbente e de seus fiéis eleitores.
Ao passo que confronta publicamente o STF, questionando sua legitimidade e a sua competência profissional, o presidente busca frequentemente a utilização dos instrumentos de revisão judicial, para que a Corte intervenha na proteção dos interesses de seu governo e de seus apoiadores. Como se não bastasse, numa postura imprudente (e contrária ao corpo técnico do governo), agora, ignora deliberadamente temas já decididos (inclusive com trânsito em julgado, quando não cabe mais recorrer sobre a questão) e busca forçar a reabertura do debate sobre eles (em demonstração para seus apoiadores de sua irresignação), sem qualquer efeito concreto e numa situação clara e antecipada de insucesso.
Não há revanche para o mau perdedor.
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