Artigo

“Não olhe para cima”, nem para o espelho

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

O filme da moda na Netflix, já tratado por colegas de blog, dialoga perfeitamente com as consequências da imbecilidade sobre a realidade. Em meia linha, a mensagem: “Ignorar a ciência pode nos levar ao fim do mundo”. O cometa, facilmente, é a pandemia. A diferença é que, em vez de ignorar o céu, muitos fingem que o perigo “não mora ao lado”.

Para quem vive no Brasil, as coincidências não se esgotam na catástrofe principal. A soma de idiotices passa: a) pela crença nos milagres empresariais; b) pelo que a política gera quando a tratamos sob discursos fáceis e; c) termina com críticas à academia. Sim, apesar de valorizar a ciência o filme é bastante ácido em relação à pesquisa universitária (ou bem realista).

Comecemos pela lógica privada. O interesse comercial no cometa acaba com a Terra. O mito das soluções privadas fáceis para problemas públicos não é novidade. Respostas empresariais parecem atender tranquilamente a todo o desafio social. Falácia. E se no filme o financiador eagle diamond da campanha governa, a realidade não é muito diferente. Aqui, e em tantos outros lugares, até o próprio empresário governa – o que é democrático, mas pode não ser tão extraordinário. O Brasil comprou, de forma mais intensa desde 2016, que pessoas do mundo dos negócios seriam melhores gestores públicos com base em seus saberes privados.

Por mais legítimo que possa ser o interesse político destes agentes, uma parte da ladainha é mentirosa, e nem tudo se resolve com a criatividade privada. Ademais, empresas são, por vezes, mais burocráticas que o próprio Poder Público – basta prestar serviço e tentar receber de algumas gigantes do mercado para saber. Para completar, neste país, CNPJs são ultradependentes do Estado. Pouca coisa sobrevive sem ajudas, exceções, isenções, perdões, jeitinhos, esquemas etc. Por isso, é inimaginável o tal liberalismo econômico, bem como, respeitando a crítica intelectual do filme e antes que eu apanhe à toa, destaco que o comunismo também seria inviável.

Sigamos com a ideia política. Tudo pode ser transformado em voto. E em discursos fantasiosos – esta teoria da narrativa transcender o debate técnico tem décadas e é óbvia até mesmo para uma criança. Faz poucos anos, uma pesquisa de opinião mostrava que o brasileiro preferia um presidente que lhe apresentasse solução fácil à crise, mesmo que inviável, do que lhe dissesse a verdade sobre a complexidade presente. Para parte do eleitorado, a política é cara; a democracia, desnecessária; e o mundo público tem a obrigação, sem a sua ajuda, de lhe trazer soluções. Quando chegamos ao limite da descrença e votamos com raiva, temos o que há de pior. O filme não parece real à toa: Meryl Streep é Donald Trump, e no Brasil é Jair Bolsonaro “de saias” – algo indicado pelos próprios responsáveis pela atração. Simples assim, com as redes sociais, os algoritmos e tudo o mais na “construção das realidades”.

E terminemos com o que poucos sabem. Não há sátira apenas à distância entre ciência e realidade como se um fosse a solução e o outro, o problema. É muito pior, mas você precisa viver para crer. O filme escancara parte das mediocridades do universo acadêmico. O professor vivido por Di Caprio é viciado em remédios e infeliz com a rotina, e sua orientanda não foge à regra. Ambos têm dificuldades extremas de se comunicarem com o “senso comum”, ou seja, o essencial à humanidade aos olhos da pesquisa escapa à sua capacidade de tradução. Só se salva, inicialmente e de maneira rara em algumas ciências, o respeito dele pelos “direitos autorais” de sua subordinada. Isso é quase um milagre em alguns grupos de pesquisa.

No entanto, chega um instante em que tudo muda: o galã carente acerta o discurso e passa, como produto midiático, a fazer parte do espetáculo. Tomando gosto pela coisa, ele acredita estar fazendo o bem, mas quem está no controle é sua vaidade. A sátira é contundente: a vida na torre universitária é tediosa, a distância à realidade é imensa e não existe nada mais ridículo que um docente deslumbrado no espelho de cauda aberta bancando um pavão “desconhecido”.

Vivo neste universo, sem saber se estou descrevendo o que me incomoda ou o que me caracteriza – tenho que ser realista, mesmo que isso doa. Para completar, vícios questionáveis de toda ordem. Por exemplo: próximo do caos, a preocupação do gênio é entender se um dado relatório passou pela revisão cega de pares. Pois é. O filme deixa sua mensagem: “Não olhe para cima”, mas se for acadêmico, cuidado também com o espelho… e com o que tem ao seu lado.

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