Entre IV e V a.C. na Grécia Antiga a “Escola sofística” se fez presente entre as tradições filosóficas e explicava o mundo a partir de suas concepções. Os chamados sofistas eram um grupo heterogêneo, mas comungavam algumas características que os aproximavam, evidenciando um movimento filosófico. Primeiramente, era inequívoca sua retórica apurada, fazendo que fossem muitas vezes ditos como mestres da linguagem e da arte de persuadir. Traço marcante dos sofistas era também o relativismo, para eles não existiam verdades absolutas nem certezas inquebrantáveis (CASTRO, 2013) em âmbito algum da vida. Para sofistas, tudo deveria ser submetido ao crivo da dúvida e da crítica (CASTRO, 2013), o que, a priori, pode até parecer interessante, o problema é que, no mesmo momento que tudo questionavam, nutriam “um notório desprezo por questões como a origem mais profunda das coisas e a composição da matéria e dos seres” (CASTRO, 2013). Para estes, tudo poderia ser relativizado, e o conteúdo da palavra dita era o que menos importava, ao passo que a forma que o discurso era proferido para persuadir aquele que escutava era o ponto nevrálgico de sua intenção. Sofistas invertiam certezas, transformavam discursos fortes em fracos e faziam ideias muitas vezes rejeitadas pelo público serem aceitas com convicção após o exercício de convencimento (CASTRO, 2013).
De longe, as ideias sofistas podem parecer um joguete retórico insonte de alguns gregos antigos. No entanto, a realidade mostrou como as ideias sofistas foram perniciosas para a sociedade grega. Alguns autores vão afirmar inclusive que o pensamento sofista foi um dos grandes responsáveis pela decadência de Atenas – cidade organizada politicamente a partir da democracia, local imponente e movimentado da antiguidade -, e por “ruir as bases em que estava assentada a sociedade ateniense” (CASTRO, 2013. MOSSÉ. DE ROMILLY, 1990).
“O que é verdade em Atenas não é verdade em Esparta”, relativizavam os sofistas. E assim discursavam e ensinavam seus alunos que o cerne de um debate deveria ser convencer o público do que quer que seja, sendo desimportantes a preocupação com o conteúdo do que estava sendo dito e as consequências do dito.
Por essas e outras que Platão, no seu diálogo O sofista, classificou este personagem como alguém que entretém controvérsias do tipo chamado erística, ou seja, técnica argumentativa que não tem preocupação com a verdade.
A história andou seus passos, e os sofistas de Atenas ficaram para trás. Inclusive Hegel, no seu Lições sobre a História da Filosofia, chega a afirmar que os sofistas, ao trazerem o subjetivismo para o centro do debate, cumpriram uma etapa importante do desenvolvimento do pensamento filosófico.
Mas será que de fato a sofística ficou no passado antigo?
Em 16 de dezembro do ano que passou, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou o uso da vacina contra a covid-19 do laboratório Pfizer para a vacinação de crianças brasileiras de 5 a 11 anos. No mundo, mais de 15 países já vacinaram suas crianças contra a doença, são eles: Alemanha, Áustria, Argentina, Canadá, Chile, China, Cuba, Dinamarca, Estados Unidos, Espanha, França, Grécia, Hungria, Israel, Itália e Portugal. Para a análise dos dados dos estudos e dos resultados laboratoriais, a ANVISA contou com seu corpo técnico e com especialistas externos da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) e da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Mas, então, eis que os sofistas de várzea entraram em campo. E já que estes surgem “não para explicar, mas para confundir” e, assim, convencer aqueles que assistem ao debate de que desatinos irracionais são, sim, a melhor solução, lançou-se a famigerada “Consulta Pública sobre a vacinação de crianças”, de 23 de dezembro de 2021 a 2 de janeiro de 2022. Ignorando os especialistas, o governo achou importante ouvir a população sobre o assunto. A intenção parecia ser dar legitimidade ao seu negacionismo, dado que o presidente da República e o ministro da Saúde vinham publicamente se posicionando contra a vacinação de crianças. Nessa consulta, toda a população brasileira, até uma Zé das Couves, doutora em Ciência Política, que sabe pouquíssimo de infectologia, pediatria, imunologia etc., como esta que vos fala, poderia dar sua não embasadíssima opinião.
O que o governo brasileiro não esperava é que sua manobra sofística malfeita não convenceria ninguém, nem mesmo os participantes da consulta pública foram persuadidos de seus argumentos.
Platão riria.
Já nós, que vivemos estes tempos, lamentamos o erário público dispendido e as vidas das crianças que serão perdidas pela demora da vacinação.
PLATÃO. Diálogos. O Sofista.
KERFERD, G. B. O (2003) Movimento Sofista. São Paulo: Edições Loyola, 2003
CASTRO, Roberto. (2013) Platão contra os sofistas: sobre a retórica.
MOSSÉ, Claude. ROMILLY, Jacqueline de Romilly. Problèmes de la démocratie grecque, 1986. (Agora, 10). Revue des Études Anciennes, v. 92, n. 1, p. 170-171, 1990.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. (1833) Lições Sobre História da Filosofia, publicado em 1833
ESTADO DE MINAS. Veja quais países já vacinam crianças contra a COVID-19 https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/12/27/interna_internacional,1333974/veja-quais-paises-ja-vacinam-criancas-contra-a-covid-19.shtml
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