“Aliás, se pudesse dar um conselho, é o seguinte: a sociedade não tem que saber como é que vota um ministro da Suprema Corte. Sabe, eu acho que o cara tem que votar e ninguém precisa saber. Votou a maioria 5 a 4; 6 a 4; 3 a 2. Não precisa ninguém saber”, disse Lula, no programa Conversa com o presidente, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Essa infeliz fala do presidente da República, improvisadamente dita em defesa do ministro por ele indicado como reação frente a críticas apresentadas pela imprensa, por outro lado, fez retornar à pauta um relevante debate sobre a institucionalidade do Tribunal.
A Constituição Federal, no seu artigo 93, inciso IX, garante, de forma literal e categórica, que todas as decisões judiciais (individuais ou coletivas) serão públicas e fundamentadas, em todas as esferas desse poder, principalmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). Muito distante de ser uma defesa de segredos e obscurantistas, esse debate ora apresentado confronta duas indesejadas características da Corte, que se desenvolveram nas últimas décadas: a individualidade e a personificação. Em coluna anterior, apresentaram-se os problemas resultantes do predomínio de decisões monocráticas e da necessidade de o Tribunal se comportar mais institucionalmente, como colegiado que debate e decide, unanimemente ou por maioria de votos, para deixar de agir apenas como a soma de entendimentos fragmentados, organizados em maiorias incertas a depender dos estímulos de cada caso.
Falemos agora da personificação. As sessões de julgamento (antes apenas presenciadas por interessados e por advogados) passaram a ser transmitidas em áudio e vídeo pelos canais oficiais — e, muitas vezes, reproduzidas pelos meios de comunicação. Os rostos e as vozes de ministros e ministras do STF passaram, aos poucos, ao amplo conhecimento público. Nesse ambiente de crescente e intensa exposição pessoal, surge o fenômeno ora descrito, em razão do qual já foram testemunhados votos recitados em cordel, trocas de ofensas diretas entre desafetos, humilhações públicas, entre outros indesejados momentos. Isso, com o passar do tempo, cobrou o seu preço.
Em vez de serem percebidas como naturais mecanismos institucionais de freios e contrapesos — impostos a todos os agentes públicos cujo comportamento, em tese, viola os limites estabelecidos na Constituição —, as decisões de cada membro do Tribunal (mesmo em situações colegiadas) passaram a ser percebidas pelo público como reações pessoais aos temas tratados em cada processo a ser julgado, em cada conflito a ser resolvido. Em todo julgamento, há duas partes, e sempre haverá um lado descontente com o resultado. Todavia, a personificação das decisões, naquilo que a literatura já denominou de “arquipélago das 11 ilhas”, aos poucos, trouxe à percepção popular “culpados” pela derrota (os ministros), devidamente identificados. Não tardou em surgir narrativas políticas de perseguição e de ódio contra os julgadores, posicionados como inimigos a serem derrotados, sobrepondo-se ao real e necessário enfrentamento da constitucionalidade das agendas políticas, independentemente de quem esteja no governo e de quais interesses lhe dão suporte.
O resgate da percepção institucional da Corte é urgente, especialmente num cenário de forte polarização política de um país que ainda busca curar as feridas. Não podemos mais adiar o debate sobre reduzir a exposição pública pessoal dos julgadores, sem prejuízo à publicidade e à transparência dos julgamentos. Precisamos de um Tribunal unificado, julgando com discrição, sem segredos.
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