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#Nenhumaamenos

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Na marcha #NiUnaMenos, de 3 de junho de 2017, na Argentina, Rita Vagliatti, Mariana Dopazo, entre outras, filhas de torturadores da ditadura cívico-militar, ingressaram com pedidos de

desfiliação. A partir de suas histórias e denúncias, o movimento feminista argentino pôde estabelecer a conexão entre o terrorismo de Estado produzido no país, seus campos de concentração e as casas familiares dos torturadores.

Esses pedidos de desfiliação permitiram demonstrar que era falsa a ideia, bastante difundida nas ditaduras, de que muitos genocidas e torturadores eram “bons” ou “carinhosos” dentro de seus lares, e que somente fora do ambiente doméstico exerciam sua crueldade e múltiplas violências. Pelos depoimentos e denúncias, percebemos que a opressão estava tanto nas dinâmicas familiares como na sala de tortura. Ou seja, não há terrorismo de Estado sem ligação com a família patriarcal.

Como diz Verônica Gago: “A ditadura não teria como coordenar a ação cívica, eclesiástica, empresarial e militar se não tivesse como bandeira a missão de ‘salvar’ a família ocidental e cristã. A espacialidade do campo de concentração não poderia existir se não fosse ratificada nos lares dos genocidas”[1].

O movimento #Nenhumaamenos e a luta dos movimentos feministas na Argentina e na Colômbia pela descriminalização do aborto me remeteram ao recente filme de Pedro Almodóvar, intitulado Mães Paralelas, e ao filme A filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal. Nos dois longas-metragens, a maternidade e a posição de filiação são colocadas em xeque; o corpo e sua função materna não podem ser fundados na ideia de uma soma de predicativos privados e ególatras. O corpo como propriedade só produziria sofrimento, loucura, ausência de liberdade e morte (bem ao gosto da Opus Dei franquista). É necessário entender o corpo como território que precisa ser desenraizado dos predicativos patriarcais (tornado Comum ou corpo-território[2]). Os corpos precisam se tornar territórios livres da acumulação, exploração, saque e alienação para terem chance de um futuro de sanidade física, mental e de “re-existência” política e ambiental.

Por isso, é tão importante que os movimentos feministas, suas lideranças e sua produção artística e científica produzam a visibilização da cartografia dos vários tipos de violência (simbólicas ou não) exercidos sobre os corpos “feminilizados” ou corpos dos não-proprietários. Estes, inclusive, são normalizados como descartáveis e matáveis, cotidianamente e, especialmente, nos discursos produzidos durante a pandemia de Covid-19[3].

A visibilização dessa cartografia da violência como forma de produção de corpos descartáveis e matáveis[4] permite que desloquemos o tópos da violência de gênero da domesticidade e o coloquemos como o que é: resultado da articulação de uma economia política neoextrativista e neocolonial, associado a uma governabilidade neoliberal, que tem como estratégia o uso da guerra[5] e da violência como formas de produção.

Segundo Silvia Federici[6], há um estado de guerra permanente contra as mulheres, e esta guerra é sempre deflagrada em cada nova fase de “acumulação primitiva” do capital. Ou seja, podemos descrever os diversos ciclos de acumulação primitiva como momentos históricos, nos quais a violência se torna força produtiva privilegiada para a acumulação do capital. É um momento central para o saque e para a produção de descarte dos corpos que não acumularam propriedades.

Os corpos não proprietários, continua Federici, substituem os espaços (especialmente terras comuns) que foram cercados, privatizados. Por isso, há a relação intrínseca entre capitalismo, patriarcado e biopolítica. Não é à toa que a queima às bruxas na Europa se relacionou, concomitantemente, com os processos de colonização dos países europeus nos territórios da América e da África.

O momento de subjugação, hierarquização e racialização do sistema capitalista é simultâneo ao processo de criação de um proletariado. A extração da mais-valia – que só é possível com a criação do corpo do operário, empobrecido para vender sua força de trabalho – existe em razão da produção do corpo feminino e do corpo negro como ainda dotados de menor valor ou mais sujeitos à extração e ao saque.

As mulheres e os escravos se tornam propriedades-troféus da guerra do início do capitalismo. Para eles, a domesticidade era, inclusive, espaço de proteção, seja por serviços mais leves, seja por matrimônios burgueses, enquanto os que ficavam à intempérie sempre foram reféns da barbárie.

E essas “cenas” não se repetem?

O que revela o áudio do deputado Arthur do Val, vulgo “Mamãe falei”, senão, da maneira mais escatológica possível, a visão de que há a possibilidade de que, na guerra europeia, se tenha uma “janela de oportunidade” para que os corpos das mulheres brancas europeias também entrem para o espaço da barbárie e do neoextrativismo. Exaltado, o deputado parece gritar: “Olhem só que oportunidade de negócio única e espetacular!”.

Na mesma linha pornográfica, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que a guerra entre Rússia e Ucrânia trouxe uma boa oportunidade de negócios para o Brasil, com a aprovação, em regime de urgência, da exploração mineral em terras indígenas.

Qual o limite da constante reencenação da violência como fonte de uma economia política neocolonial e neoextrativista? Até quando podemos aceitar a reencenação da bela, recatada e do lar?

Será que os corpos-proprietários, mesmo esses, podem suportar essas reencenações cíclicas do par guerra e acumulação? Será que não passou da hora de abrirmos mão desta forma de enquadramento violento de nós mesmos e dos outros?

Os movimentos feministas que inauguram as lutas mundiais em defesa do Comum, no 8M, nos possibilitam caminhos de reflexão e reinvenção.


[1]GAGO, Verônica. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante, 2020.

[2]Nesse sentido? ver em Federici, Sílvia. Reencantando o mundo: feminismo e a política dos comuns. São Paulo: Elefante, 2022; GAGO, Verônica. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante, 2020. 

[3]Ver: DIAS, Bárbara L. C. V.; DELUCHEY, Jean-François. A guerra revelada na pandemia: Bolsonaro e os corpos descartáveis dos brasileiros In Novas Direitas e Genocídio no Brasil – Pandemias e Pandemônio, vol. II. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021.

[4]Ver: DIAS, Bárbara L. C. V.; DELUCHEY, Jean-François. “The Total Continuous War and the Covid-19 Pandemic: Neoliberal Governmentalility, Disposable Bodies and Protected Lives” In Law, Culture and The Humanities. November, 2020, p. 1-18.

[5]Idem.

[6]Federici, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.

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