Artigo

O céu desabou

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Davi Kopenawa é um conhecido xamã ianomâmi. Em 2010, as suas conversas com o antropólogo francês Bruce Albert foram organizadas na forma de depoimentos e publicadas no livro A queda do céu (Cia. das Letras, tradução em 2015). Na epígrafe, damos de cara com esta reflexão, meio xamânica, meio filosófica:

“A terra-floresta [Urihi] está viva. Só vai perecer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. (…) Os Xapiripë [espíritos curandeiros e protetores], que moram nas serras e brincam nas florestas, fugirão. Os Xamãs, os seus pais, não mais poderão chamá-los para nos proteger. Urihi se tornará seca e vazia. Quando não houver mais nada vivo para sustentar o céu [Xapiripë e Xamãs], ele vai desabar.” [Na cosmologia ianomâmi, o seu povo, especialmente os Xamãs, conectores dos humanos com os Xapiripë, são os esteios que seguram o céu”.

E não é que desabou? Em maio, o céu desabou aqui, no Rio Grande do Sul. Foram toneladas e toneladas de chuva. Cidades inteiras, cidades quase que inteiras ou parcialmente submersas. Arrastados pelas enxurradas, carros, geladeiras, sofás, fogões, bicho, gente, casas, livros… Todos foram embora para não mais voltar. Dos esgotos, transbordaram detritos. Aos montes, ratos e baratas brotaram das profundezas dos bueiros. Desabamentos, desmoronamentos, rodovias esfareladas e pontes esquartejadas pelas águas. Pessoas ilhadas, desalojadas, desabrigadas, desalentadas, desaparecidas. Mais de uma centena morta. Histórias de toda uma vida destroçadas, memórias perdidas, laços desfeitos. Propriedades danificadas, inutilizadas, esvaídas. Milhares e milhares de viventes sem eletricidade e abastecimento de água. Muitos sem comida. Gatos, cachorros, papagaios, cavalos… Todos perdidos, insulados, atônitos, esfomeados, tremendo de frio e, vários deles, mortos. Escolas, hospitais, museus, arquivos, bibliotecas… Tudo arrasado.

Com as vias de acesso interditadas, a capital ficou sitiada. O aeroporto virou um lago de aviões afogados. Muitos dos bairros foram evacuados e inúmeros prédios, esvaziados — alguns poucos residentes resistiram, recusaram-se a sair das próprias ilhas cercadas de caos por todos os lados. Sirenes dos bombeiros, das ambulâncias e da polícia gritavam numa cacofonia intermitente cidade afora, enquanto um enxame de helicópteros rasgava em tiras (logo desfeitas e logo refeitas) o imenso lençol de nuvens escuras e encharcadas num vaivém como nunca se viu.  

As Forças Armadas, por meio de veículos anfíbios, aeronaves, barcos e navios, mesclaram as tropas com o vasto exército de voluntários civis oriundos de todas as partes. Juntos, puseram barcos — alguns grandes, outros pequenos; alguns apetrechados, outros improvisados — a navegar por ruas, avenidas, parques e praças em incansáveis missões de resgate. Policiais civis e militares do Estado saíam em patrulhas aquáticas para evitar roubos e saques em meio à escuridão empapada de um cenário inegavelmente pós-apocalíptico. Médicos, veterinários, enfermeiros, hospitais de campanha e postos de atendimento inventados na hora socorriam os necessitados. Abrigos e mais abrigos acolhiam, cozinhas solidárias cozinhavam, doações chegavam, religiosos oravam, a imprensa cobria e toda a gente, comovida e engajada, procurava ajudar como podia. 

Se a gente for sabida, tirará pelo menos duas lições dessa catástrofe climático-político-econômico-social [até os jacarés que nadavam esgualepados no Menino Deus sabem que a leniência/conivência politiqueira responde por um naco substancioso das causas e consequências do desmoronamento celeste!]. Primeira: o neoliberalismo laissez-faire preconiza um tipo de Estado — esquálido e omisso —, que não passa de um blá-blá-blá anacrônico perante os desafios do mundo contemporâneo. É fato para além da esquerda e da direita que o Estado seja crucial à segurança e ao desenvolvimento nacionais. Segunda: carecemos de lideranças políticas verdadeiras. Em momentos de crise, isso fica mais nítido — até nas expressões corporais de lideranças falsas, moldadas por marketing e lacrações de redes sociais —, revelando despreparo e carência de atributos. Lideranças reais têm personalidade talhada para resistir, estoicamente, às pressões do momento, pois são verdadeiramente proativas, resolutas e inovadoras, capazes de coordenar com a autoridade de quem sabe inspirar os demais a agir em projetos coletivos.

Sim, o céu desabou! Yariporari e Xiuairipo, estes dois poderosos xapiripë, estavam mesmo muito zangados com o nosso modo de lidar com Hutukara (Terra/Universo). O problema é que, sem lideranças reais que compreendam a necessidade de robustecer as funções estratégicas do Estado e construir um caminho mais seguro e sustentável, o céu seguirá desabando cada vez mais pesadamente sobre a generosa e sofrida Hutukara.

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