“Um golpe armado, na atual conjuntura, seria um crime monstruoso, uma traição nefanda e torpe à pátria (…) às Forças Armadas, cabe o dever de aceitar a decisão soberana das urnas como um veredicto inapelável e (…) o de garantir a autoridade do candidato legitimamente eleito, seja ele quem for.”
(…)
“As eleições transcorreram dentro da normalidade, mas setores do (…) [partido derrotado] ameaçaram entrar na Justiça Eleitoral com um pedido de embargo da posse do vencedor. (…) Foi o ministro da Guerra quem veio a público para dizer que o governo não iria endossar a tese (…) e que assim, a posse estava garantida. Ele, no entanto, resolveu enviar ao presidente eleito um recado a ser entendido mais como recomendação, e não como advertência.”
Os trechos acima, minimamente adaptados sem perda do sentido, sucedem a ideia presente no livro de onde o tirei de que se esperava um “amortecimento do espírito golpista na caserna” a partir da eleição da nova diretoria do Clube Militar, encabeçada por um agente que constava nas “recomendações” do citado ministro como alguém a ser evitado no futuro governo. Não se trata, perceba, de nada que tenha ocorrido nas últimas semanas. Por coincidência, ao mesmo tempo que acompanho os desdobramentos das eleições presidenciais de 2022, estou terminando o último volume da trilogia Getúlio, de Lira Neto. Estou em 1950, e Vargas foi reeleito para novo mandato depois de ter sido deposto como ditador, pelos mesmos militares que o apoiaram e o apoiariam nesse instante. Fico surpreso como a adaptação dos trechos se assemelham, em alguma medida, com o que vivemos hoje. Não apenas pelo espírito golpista de quem possui o dever constitucional de zelar pela defesa do País, presente até hoje em posturas ameaçadoras, mas também pela eterna dificuldade de derrotados se satisfazerem com os resultados nas urnas.
Quatorze anos após o episódio destacado, o Brasil seria tomado por um golpe capaz de instituir uma ditadura militar que duraria mais de duas décadas – de 1964 a 1985. Antes e depois disso, no entanto, não são poucos os episódios políticos que procuraram a garantia das Forças Armadas para legitimarem aquilo que supostamente a democracia havia trazido. A posse de Juscelino Kubitscheck, por exemplo, foi assegurada por um militar, assim como a morte de Tancredo Neves, em 1985, garantiu a ascensão de José Sarney somente após manifestação dos quartéis acerca do rumo a ser tomado, tendo em vista que o vencedor do pleito indireto não havia tomado posse do cargo, o que ficaria para o seu vice.
Em 2002, me lembro, a filial de um tradicional clube de amigos no interior de São Paulo ouviu atenta a uma palestra que proferi sobre política para me perguntar, ao fim, se os militares permitiriam que Lula, um “terror comunista” na voz do decano, tomaria posse como presidente caso vencesse as eleições daquele ano. Diante de tais fatos, que ligam a Proclamação da República aos dias atuais, me pergunto: que tara é esta que perdedores políticos, descrentes na democracia, a despeito de suas falhas, têm nas Forças Armadas? E que resposta é esta que pode variar de golpes de Estado absurdos a silêncios ou ameaças formais, como se tal setor da sociedade tivesse o dever institucional de responder a assombros desta natureza?
Sabemos, todos, que a entrada das Forças Armadas nas eleições deste ano ocorreu por meio de uma barbeiragem infantil de uma Justiça Eleitoral encabeçada por um cidadão, à ocasião, infinitamente mais convicto de suas ideias próprias de democracia, por mais que parte delas sejam dignas e respeitáveis, do que por um ator responsável e conhecedor dos limites éticos e legais de sua posição e das organizações nacionais. Contudo, a pergunta adicional: por que a caserna aceitou auditar urna? Por que não se restringiram a dizer que a função institucional dos militares é outra? Por que insistem em rondar a política e voltar a um protagonismo histórico que nos distancia do status de nação estável e democrática? Não percebem que avalizam o gesto atabalhoado de uma sociedade que lida mal com o contraditório e parece sempre disposta a apostar em alternativas débeis e agressivas para contestar o que a desagrada? O fantasma dos quartéis é, hoje, aparentemente, mais uma ameaça e uma sombra do passado do que uma instituição capaz de atentar contra a ordem política. Contudo, quero lembrar que isso precisa ser reafirmado diariamente, afastando a anormalidade das respostas rápidas, fáceis e inconstitucionais buscadas por alucinados que se aglomeram em torno de quartéis, subvertendo a ordem do espaço e vociferando contra a lógica democrática.
Termino, assim, esta história me recordando dos quase dois anos em que trabalhei na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), entre 1993 e 1995. Ao lado do Palácio 9 de Julho, sede do parlamento estadual, existe um quartel do Exército onde faz dias estão concentrados, confortavelmente, manifestantes bolsonaristas na capital paulista. Uso o adjetivo associado ao aconchego para reafirmar que, ali, temos um bairro nobre da cidade, com um parque maravilhoso às costas, transporte público de qualidade nas proximidades, muitas vagas para veículos nas ruas, boa estrutura de bares e restaurantes – e, até mesmo, hotéis. Muito mais fácil do que, por exemplo, uma aglomeração do tipo em Quitaúna ou adjacências, que até ocorreram e duraram pouco, concentradas no feriado de Finados. Mas voltemos à minha história…
Certa feita, quase chegando ao trabalho, estacionei o carro ao lado do quartel para verificar um pneu furado. Desanimado com a ocorrência, abri o porta-malas e me preparei para o uso do estepe. Poderia ter ido até o estacionamento da Alesp, mas achei que poderia agir ali mesmo. Ignorei, de maneira distraída, as diversas placas de proibido parar e estacionar – o “E” duplamente cortado sobre a pequena placa “área militar”. Não se passaram dois minutos até que dois soldados armados me advertissem dizendo que eu não poderia parar ali. Mostrei o problema, mas fui desencorajado a continuar o serviço. Coloquei minhas coisas no carro e segui com o pneu murcho mais alguns metros. Envolto em minhas memórias, coloquei o simpático bonequinho do Google Maps no quartel. As placas continuam lá, proibindo qualquer obstrução nos arredores do quartel, assim como o tumulto dos manifestantes e toda a sua estrutura. O fim deste texto pode parecer inocente diante de tudo o que trouxe anteriormente, mas é emblemático, sinalizando o caráter relativo de uma série de atitudes na nossa sociedade. Os militares cercam suas estruturas com placas para que possam ficar imersos em suas obrigações institucionais e eventuais emergências – e, ao que nos consta, dar guarida para movimento golpista em “área militar” passa longe de ser função das Forças Armadas brasileiras. Sem mais, fico imaginando que se eu tivesse saído do meu carro, em 1994, com uma camisa da seleção brasileira e gritado algumas alucinações em bando, talvez pudesse terminar meu serviço em paz. Será?
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