Artigo

O gabinete raso

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Dia 8 de setembro de 2020. Numa sala pequena, fechada, várias pessoas se aglomeravam, sem usar máscaras. A maioria delas, sentada diante de uma mesa encabeçada pelo presidente Bolsonaro, ladeado por Osmar Terra, que, a julgar pelas manifestações de alguns participantes, era o articulador do encontro. Numa das laterais do auditório, um solitário microfone ficava à espera das manifestações de algumas personagens de mais destaque, como a imunologista Nise Yamaguche e o virologista Paulo Zanotto.

Esse é o conteúdo da gravação divulgada pelo site de notícias Metrópoles há poucos dias. Pelo teor dos pronunciamentos, depreende-se que os participantes estavam imbuídos de um claro objetivo: municiar o presidente Bolsonaro com aconselhamentos “médicos e epidemiológicos” para o enfrentamento da pandemia. Dois temas predominaram: a defesa do uso da hidroxicloroquina para o tratamento do covid-19 (inclusive para quem tem arritmia cardíaca, pasmem!) e as reservas quanto à eficácia e à segurança das vacinas.

A recuperação desse vídeo no meio do processo investigativo da CPI do Covid, obviamente, põe em polvorosa o habitat político; afinal, estas imagens reforçam o entendimento de que havia uma espécie de “gabinete paralelo” de assessoramento para orientar as políticas sanitárias do governo. Além disso, há indícios que reforçam a suspeita de que Osmar Terra atuava como um ministro da Saúde às sombras.

A propósito, a sugestão apresentada pelo senhor Zanotto para operacionalizar essa “assessoria informal” revelou que, além da “heterodoxia científica”, o grupo palpitava sobre um tema mais afeito à Ciência Política. Ele cogitou a formação de um grupo mais reduzido de especialistas que funcionaria como um shadow cabinet.

Além do uso inadequado ao contexto constitucional brasileiro, este equívoco conceitual talvez tenha sido um ato falho revelador do modo de funcionamento de um governo geringonça. Sugere-se que um grupo informal auxiliaria o governo a fazer oposição a uma instância formal do próprio governo. Para ressaltar este aspecto, vale uma pequena digressão acerca da matriz institucional de Westminster.

O processo político no contexto inglês é cheio de liturgia tradicionalista. Pompas, circunstâncias e uma profusão de salamaleques circundam Westminster no dia a dia de lordes e comuns, trabalhistas, conservadores e liberais. Foram longos anos, décadas, séculos de decantação e de institucionalização dos seus costumes acerca dos procedimentos considerados legítimos para a conquista e o exercício do poder.

Do Absolutismo do fim da Idade Média e início da modernidade, emergiu a monarquia constitucional, ou seja, um regime pautado pelos limites às ações da Coroa interpostos pelo parlamento; desse sistema de poder dividido, brotou a democracia parlamentarista, com o surpreendente retorno da fusão dos poderes Executivo e Legislativo – só que, agora, não mais no monarca, mas na Casa dos Comuns.

Desta evolução institucional, formou-se uma tradição de embates regulados entre o governo e os opositores. De início, qualquer oposição ao governo era tida como uma afronta ao rei e, quiçá, à própria monarquia. Casos assim podiam acabar com algum pescoço estirado numa forca.

Insustentável a longo prazo, essa medida tão drástica foi sendo paulatinamente substituída por uma alternativa mais palatável. A oposição passaria a ser tolerada, mas com a condição de que críticas e objeções deveriam ser endereçadas ao gabinete encarregado dos negócios de Estado, e nunca ao rei ou ao regime – Her Majesty’s Most Loyal Opposition (“A Lealíssima Oposição de Sua Majestade”, em português).

A emergência da democracia parlamentarista significou a transferência da prerrogativa de composição do gabinete ministerial de governo à Casa dos Comuns. Mais do que isso, na prática, tratou-se de dar esta incumbência ao partido majoritário desta instância do Legislativo. Automaticamente, ao partido minoritário caberia cumprir a função institucional de fazer oposição, que, conforme dita a praxe, deverá ser leal tanto à Coroa como às regras do jogo democrático parlamentarista.

No entanto, por ser minoritária, a oposição não dispõe de instrumentos regimentais eficazes para bloquear as iniciativas do governo. Resta-lhe, apenas, atuar como um “governo em espera”. A evolução institucional dessa condição produziu aquilo que se tornou outra parte intrínseca do modelo político: o “governo-sombra”. Isso envolve a formação de um gabinete ministerial virtual, com a responsabilidade de se posicionar no debate público com políticas alternativas às do governo.

Assim, o shadow cabinet é a forma de se fazer oposição neste arranjo institucional. Pressupor que esse “gabinete paralelo” pudesse agir como um shadow cabinet é um indicativo de que a haveria um grupo ligado ao governo que atuaria em oposição às políticas do próprio governo – mais precisamente o seu Ministério da Saúde. A julgar pelos seus conselhos para lidar com a pandemia, talvez fosse mais apropriado denominá-lo de shallow cabinet: infectado por ideias rasas.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.