Artigo

O golpe e o mundo

Daniel Buarque
é pesquisador de Relações Internacionais no King’s College London (KCL), jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de Brazil, um país do presente.
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Daniel Buarque
é pesquisador de Relações Internacionais no King’s College London (KCL), jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de Brazil, um país do presente.

Repetidas declarações do presidente da República, cada vez mais ecoadas por militares da ativa, questionam o sistema eleitoral brasileiro na tentativa de desacreditar o processo democrático. O movimento tem sido lido como uma demonstração clara de que Jair Bolsonaro e seus seguidores nas Armas preparam um golpe de Estado a partir de outubro, se recusando a aceitar uma eventual derrota e impondo a continuidade do seu regime à força. Tal cenário geraria grandes instabilidades domésticas e, com certeza, abalaria as relações do Brasil com o resto do planeta.

O caso de tensão mais evidente na escalada autoritária do Brasil é com os Estados Unidos. A maior potência do mundo é uma das relações mais antigas e importantes da diplomacia brasileira e tem influência (muitas vezes exagerada) sobre a política da América Latina. Ao contrário do apoio dado pelos norte-americanos ao golpe militar de 1964, o governo de Joe Biden tem acenado contra qualquer tentativa de subverter a democracia brasileira.

Na primeira semana de maio de 2022, veio à tona a notícia de que o diretor da Agência Central de Inteligência dos EUA, a CIA, disse a autoridades de alto escalão do Brasil que Bolsonaro deveria parar de lançar dúvidas sobre o sistema de votação do País. Antes disso, o governo Biden recebeu um dossiê de acadêmicos com alerta de “versão mais extrema do ataque ao Capitólio” no Brasil. São crescentes as evidências de que o governo americano não aceitaria a tentativa de golpe no País e faria forte pressão contra uma potencial ditadura de Bolsonaro com os militares. Isso teria forte impacto sobre a economia nacional e sobre sua capacidade de alcançar reconhecimento internacional.

Assim como os Estados Unidos, a Europa tende a se colocar em oposição a uma nova ditadura no Brasil. Desde o início do governo de Bolsonaro, houve várias tensões entre diferentes líderes europeus. O foco central tende a ser a questão ambiental, mas é evidente que não haveria boa vontade na Europa em relação a um golpe no País.

A situação não é muito diferente na América Latina, onde os movimentos eleitorais mais recentes têm sido vistos como uma volta da onda rosa, de governos de esquerda no continente. Chile, Argentina, México e, possivelmente, a Colômbia são exemplos claros disso. São vizinhos importantes, que dificilmente aceitariam a transformação autoritária do Brasil sem abalos nas relações diplomáticas.

É possível que o Brasil ditatorial de Bolsonaro tenha apoio dos países que formam os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O movimento golpista pode usar a invasão da Ucrânia pela Rússia como um ensaio para os alinhamentos internacionais. A exemplo do que acontece em relação ao governo de Vladimir Putin, o bloco está em um campo politicamente oposto ao Ocidente. Além disso, são países em que a democracia não é um valor fundamental. A China é uma ditadura de partido único; a Rússia é uma autocracia sem liberdade de imprensa e com controle de direitos civis; a Índia vive uma escalada autoritária, com Narendra Modi; e a África do Sul também não é uma democracia totalmente funcional.

É verdade que a China não deve ter motivos para ter apreço pelo governo de Bolsonaro. Mesmo antes da eleição, o presidente que quer ser ditador do Brasil usou a China como alvo de muitos dos seus ataques, se servindo do gigante asiático como vilão nas relações internacionais. Mas a diplomacia chinesa costuma ter uma postura muito pragmática. Mesmo sem simpatia pelo líder brasileiro, o país pode reconhecer que colhe benefícios com a aproximação, já que as relações comerciais entre as duas nações não chegaram a sofrer tanto com as tensões políticas. E o reconhecimento de um potencial governo autoritário pode ser dado em troca de garantias de ainda maiores benefícios comerciais.

O curioso desta movimentação é que um Brasil sob o autoritarismo não só se aproximaria mais dos Brics e se afastaria do Ocidente, mas faria também um movimento contrário a muito do que Bolsonaro inclui em seu discurso. Apesar da retórica da Guerra Fria e de usar “comunismo” como um ataque padrão a seus opositores, entre as nações com as quais o Brasil pode se alinhar estão dois dos bastiões comunistas da Guerra Fria; e, do lado oposto, está o Ocidente tradicionalmente capitalista. Uma nova ditadura brasileira se afastaria do que sempre foi visto como o ideal de desenvolvimento nacional para abraçar países com menos laços históricos e culturais. E poderia consolidar o papel do País como um pária no mundo.

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