Artigo

O inimigo do meu inimigo

Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Semana passada, assistimos a dois momentos que muito denotam acerca do nosso momento político: o superpedido de impeachment e as novas manifestações contra a o governo do presidente Jair Bolsonaro. Vimos Joice Hasselmann (PSL/SP) dividindo palanque com Talíria Petrone (Psol/RJ) e militâncias do PSDB e do PCO em confronto nas ruas. No debate público, ainda está presente a dificuldade de organização da terceira via. No centro de todas estas questões, o nosso sistema partidário – e um pouco da sua história pode nos ajudar a interpretar estes acontecimentos.

O sistema partidário brasileiro começa a se organizar efetivamente em 1945. Antes disso, os partidos políticos da República Velha permaneciam muito ligados ao Estado, sem identificação popular ou lealdades históricas bem sedimentadas. A partir da Constituição de 1946, as clivagens sociais começam a se organizar em torno de agremiações partidárias. No entanto, alguns elementos presentes na nossa cultura e no nosso sistema político dificultaram o estabelecimento e a consolidação das legendas. A organização federativa excessivamente centralizada e o grande peso financeiro do poder central contribuíram para que assim fosse. A ampla preponderância do Executivo sobre o Legislativo também é elemento importante. Ao Executivo, interessa formar maiorias, e isso fortalece a clivagem governismo/oposição em relação à clivagem efetivamente partidária. Esta pulverização favorece o individualismo e prejudica o comportamento partidário.

Para além das questões que resultam de instituições políticas, o período se caracteriza pela urbanização e pelo consequente advento do populismo urbano. Este contexto foi chamado por Bolivar Lamounier e Rachel Meneguello de “pluralismo polarizado”, na clássica obra Partidos políticos e consolidação democrática: o caso brasileiro. Se a fragilidade dos partidos políticos não pode ser a única culpada pelo golpe militar que derivou do rompimento democrático, não restam dúvidas de que um sistema partidário consolidado teria dificultado que esse ato ocorresse. Quando acontecem as primeiras eleições após o golpe de Estado, em 1965, os detentores do poder federal logo percebem o risco que seria a manutenção dos partidos, e, disso, brota o Ato Institucional nº 2 (AI-2), que, entre outras medidas, extingue os pluripartidarismos e estabelece que em seu lugar fossem criadas duas organizações que funcionariam provisoriamente como partidos.

O bipartidarismo forçado foi estabelecido porque os partidos apresentavam um risco para o regime autocrático. É preciso que isso fique claro, porque, recentemente, os partidos estão sofrendo profunda deslegitimação. A partir de então, todas as clivagens políticas, antes organizadas em 13 agremiações, passam a ter de ser encaixadas no MDB ou na Arena. Essa clivagem representava mais do que um conjunto ideológico/programático, mas também a antiga clivagem já conhecida e praticada na República Velha de governismo ou oposição.

 Se, num primeiro momento, as vantagens clientelistas do governismo mantêm a força da Arena, nas eleições de 1974, o MDB aumenta sua representação na Câmara dos Deputados (de 28% para 44%) e, no Senado, ocupa 16 das 22 cadeiras em disputa. A artificialidade bipartidária estabelecida pelo AI-2 conseguiu o impensável: organizar a oposição. Se dentro do MDB se encontravam membros que iam da esquerda à direita, todos tinham segurança que não compunham o grupo de apoio ao governo.

As eleições de 1974 foram o ponto de inflexão que levou os militares a empreenderem a reforma de 1979, que destituiu o bipartidarismo artificial e possibilitou a volta do pluripartidarismo. Lamounier e Meneguello chamam este processo de “o paradoxo da abertura política brasileira”, já que a artificialidade do bipartidarismo, imposto em 1965, teria sido o arcabouço que resultou em avanços democráticos e de desenvolvimento partidário. Atenuou os componentes antipartidários da cultura política, aproximou a sociedade civil, enfim, criou as condições para uma mudança importante a médio prazo.

A partir daí, no entanto, componentes institucionais – somados à grande quantidade de demandas represadas pelo longo período ditatorial – resultaram numa larga fragmentação do sistema partidário nas décadas de 1990 a 2020. Se os membros do MDB não concordavam em tudo (ou quase nada), tinham um adversário em comum: a ditadura militar. E a organização em conjunto deste grupo foi importante quando ocorreu, mas não o suficiente para estabelecer legendas institucionalizadas. Isso porque é mais fácil concordar sobre o que não se quer do que sobre o que se quer. Não há liga mais poderosa para um grupo do que um inimigo em comum.

Temos observado um grupo de indivíduos tão diversos quanto se pode imaginar, desde oposicionistas históricos a aliados ressentidos, unindo-se na apresentação de mais um pedido de impeachment. Chama a atenção que essa união tem força para ameaçar o Executivo. A história também nos ensina que é mais fácil concordar em pautas negativas do que positivas. E não se ganha eleição nem se constrói governo concordando em ser contra, mas com conjunto programático claro. Tudo indica que 2022 será um ano difícil.

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