A Corte Suprema dos Estados Unidos julga dois casos que podem mudar o destino da responsabilidade das grandes empresas de tecnologia em relação aos conteúdos que nela são postados. Se a culpa por aberrações de toda ordem recaía quase que exclusivamente sobre os autores das postagens, este jogo pode ter o placar revirado, e as organizações correm o risco de serem criminalizadas por mensagens de ódio mantidas nos canais de redes, como YouTube, Twitter, entre outras. A tese de acusação indica que a manutenção de postagens que incentivem o ódio inspirou crimes, assim como algoritmos que estimulem a disseminação e a adesão a ideias bizarras de todo tipo.
Para entendermos parte do que ocorre aqui, no que estamos chamando de “julgamento da década”, seria bem interessante voltarmos no tempo. Há cerca de um século e meio, John Stuart Mill defendia que o sufrágio deveria ser estendido de tal sorte que “até mesmo as mulheres” deveriam ter o direito ao voto. Casado com a filósofa Harriet Taylor Mill, entusiasta das ideias feministas, o pensador londrino parecia mais disposto a defender, a despeito de um atípico respeito por uma mínima e incomum igualdade de gênero para os padrões de sua época, que quanto mais gente tivesse acesso às escolhas de representantes, menores as chances de um charlatão vencer uma eleição.
Escritos de Max Weber, que viveu entre os séculos 19 e 20, caminham em direção mais ou menos semelhante, o que significa dizer que quanto mais gente envolvida, a despeito das limitações atreladas ao sexo antes das décadas igualitárias mais recentes, maiores as possibilidades de evitar que demagogos convencessem eleitores com base em mentiras contadas a pequenos grupos. Tudo bem. É compreensível. Contudo, imagine o que passa a ser o mundo a partir do instante em que estendemos assombrosa e corretamente o direito ao voto, sem preocupações com a educação política formal, e, simultaneamente, observamos a entrada em cena de veículos de comunicação para as massas. Percebe?
Norberto Bobbio não chamou a “educação política” de uma das promessas não cumpridas da democracia, no fim do século 20, à toa. Thomas Marshall não disse, em meados do século passado, que a educação capaz de transformar o sujeito rude em cavalheiro conhecedor dos próprios direitos era pressuposto basilar ao conceito de cidadania apenas por dizer. A comunicação massificada sem o devido atendimento à basilar compreensão da realidade pode ser algo extremamente danoso à lógica da convivência. A democracia não corre riscos desde ontem, mas décadas. Ela sempre foi frágil e demanda cuidados extraordinários.
Assim, imagine que, na atualidade, estamos a viver o hiperdimensionamento daquilo que o rádio significou para a humanidade na primeira metade do século 20; e provavelmente o que a TV representou na segunda parte deste mesmo período. O extenso oceano de pessoas aptas a votar, em parte justificado pelo temor dos discursos proferidos para pequenos grupos facilmente subvertidos por demagogias, se transformou no combustível ideal para que, a partir da entrada absoluta de equipamentos como o rádio e a TV na vida das pessoas, mensagens políticas mais ou menos bem-intencionadas fossem disseminadas a torto e a direito.
Este debate rendeu milhões de produções no mundo inteiro, e distintas reações de diferentes sociedades. A conversa existe até hoje. Todo lugar do mundo tem alguma restrição ao que pode ser veiculado no rádio e na televisão, e no Brasil não é diferente. Até hoje discutimos o que a lei eleitoral impõe e permite quando o assunto é o que pode ou não ser dito a partir do calendário dos pleitos. A comunicação no setor público, dos governos com as sociedades no Brasil, tem na legislação eleitoral seus maiores balizadores. Basta conferir. Você acha que o horário eleitoral gratuito responde a que tipo de indagação? Que a suspensão de propaganda governamental a meses dos pleitos respeita a quê? Que apresentadores de programas regulares, que se candidatam, são tirados do ar por quais motivos? Percebe?
E se esse debate ainda está vivo e gera polêmicas, o que dizer da internet? Na atualidade, parece fácil determinar o que pode e o que não pode, quando e como, se o assunto é rádio e TV. Também é basilar responsabilizar quem abusa, mas isso precisou de tempo, legislação e percepção. Volto à pergunta: e com a internet?
A vida virtual mudou por completo nossos padrões de comunicação e atitudes, alterando também a forma como fazemos política e, obviamente, campanhas eleitorais. Tudo foi alterado. A atomização expressiva dos geradores de conteúdos e a lógica de crença foram modificadas. Quem é responsável pelo que se dissemina no WhatsApp? Quem paga a conta dos vídeos postados no YouTube? Qual é o impacto de tudo isso nas nossas vidas? Quem vale mais hoje: o apresentador do telejornal ou o influencer dos milhões de seguidores? Percebe?
Sobre o primeiro, recaem regras explícitas e uma percepção mais assertiva da Justiça; sobre o segundo, ficam apenas dúvidas? Limitar é censurar? Não, não é. Liberdade alguma é sinônimo desenfreado de qualquer coisa, em qualquer parte do planeta. Assim, em dimensão infinitamente maior e complexidade significativamente mais expressiva, vivemos dilemas e desafios para a política, e para a sociedade em geral, tão polêmicos e incertos quanto aqueles que passamos até entendermos (se é que entendemos) a potência do rádio e da TV. Tudo mudou, vai continuar mudando, e teremos de correr atrás do rabo como um cachorro considerado tonto, ou um gato que arranca risos de quem o observa em tal cena.
Tudo é diferente, sobretudo para quem viveu esta transformação. Nos anos de 1980, lembro-me quando o meu tio mostrou um aparelho de fax cuspindo a cópia de um documento que estava no Canadá. Fiquei muito “cabreiro” com a cena. Adiante, veio o pager; em seguida, a disseminação em massa dos celulares via contas pré-pagas. O computador trouxe a internet, que saiu do acesso discado doméstico para um pequeno terminal levado no bolso por centenas de milhões de linhas registradas entre brasileiros. É o que basta. Pense, por exemplo, no conceito de intimidade e na relação disso com o WhatsApp.
O aplicativo tem no Brasil o seu segundo maior mercado mundial, perdendo apenas para a Índia. São mais de 140 milhões de contas, com presença em 99% dos smartphones – e 94% destes usuários afirmam acessá-lo diariamente, segundo dados do Mobile Time. Fácil? Dia desses, estava com uma amiga e ela queria me mostrar algo no “zap”. Sem querer, bati o olho na quantidade de mensagens não lidas: mais de 700. Perguntei como ela conseguia ignorar tanta gente. A resposta: “Se for responder a tudo, fico maluca”.
O WhatsApp é o estereótipo mais bem acabado de invasão de privacidade e alteração da lógica de tempo que conheço. Se Umberto Eco esbravejava contra a estupidez trazida pelo Twitter antes de morrer, imagina o que estaria dizendo hoje. Trabalho, família, amigos, consumo, política, tudo misturado num mesmo aplicativo. Ansiedade no limite. Quem disse que quero ser amigo de meus melhores amigos 24 horas por dia? Quem garante que dei intimidade para o meu chefe me escrever sábado à tarde? Quem afirma que quero a minha família me acessando com conteúdos de gosto duvidoso a todo instante? Percebe?
Tal mecanismo nos coloca à disposição do universo o tempo todo. A política sabe disso, assim como também os governos e os mais diferentes discursos sobre a realidade. E agora? Vamos ver o que diz a Corte Suprema dos Estados Unidos. Se a decisão for contrária à absoluta disseminação de conteúdos, vejamos o esbravejar dos “liberais” e a resposta dos grandes negócios. A decisão deve sair em junho – a lei atual é de 1996. De quando?! Pois é. Pense o que era a internet em meados da década de 1990 e responda à pergunta: vale, realmente, tudo?
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