A identidade organizacional de boa parte das empresas brasileiras, expressa nas definições de visão, missão e valor costuma se destacar mais nos discursos do que nas ações junto aos funcionários, clientes e fornecedores. Entretanto, desde meados da década de 1980, isto vem mudando.
Na transição da modernidade para a pós-modernidade, as empresas tiveram de se reinventar, para garantir a sobrevivência em um campo social minado por incertezas e instabilidades políticas, além de fortes disputas econômicas por espaços no novo mapa de consumo mundial. A iniciativa contribui para a reconfiguração do capitalismo ao legitimar, ideologicamente, modelos de negócio em que a racionalidade econômica cede espaço ao simbólico, proporcionando a construção social de organizações aparentemente flexíveis e, sobretudo, lucrativas.
A mudança se justifica porque os modelos de negócio preexistentes, e as empresas com perfil organizacional focalizado exclusivamente na racionalidade econômica, se tornaram pouco eficazes, tanto na legitimação social como na reprodução do capital na globalização. Pelo que se observa na também chamada “sociedade da informação”, o universo corporativo vem sendo permanentemente bombardeado pela “ordem e pela desordem” que disputam a hegemonia no controle das ações no campo social.
Em meio a esta complexidade sociológica, marcada, inclusive, pelo discurso da diversidade, destaca-se, de um lado, o desafio de que as empresas atendam à demanda crescente por bens, materiais ou não, visando a satisfazer consumidores cada vez mais seduzidos por inovações representativas de signos de status. De outro, impõe-se a necessidade de substituir parcialmente treinamentos de recursos humanos baseados em recompensas econômicas por dinâmicas motivacionais ancoradas em práticas subjetivas que busquem cooptar os funcionários por meio de rituais simbólicos, ampliando o seu engajamento à estratégia econômica empresarial.
Face a este contexto, uma cruzada silenciosa vem revolucionando o varejo brasileiro, resultando em desempenho econômico exemplar de três estrelas de destaque no ranking do segmento, conforme o livro O lado místico do comércio. O trabalho nele abordado mostra como questões cotidianas e existenciais relativas ao modus operandi das organizações se pautam por um ethos mesclado de uma imbricação de religiosidade e racionalidade comercial, ilustrando a etnologia contemporânea.
Na obra, lançada pela Editora Appris, analiso o impacto da cultura do Carrefour, das Lojas Renner e do Magazine Luiza nos negócios – cultura essa turbinada por fatores estratégicos que extrapolam a racionalidade econômica. O livro se baseia na pesquisa para o meu doutorado em Ciências Sociais e busca desvendar a ligação e os efeitos da crença e da fé com os rituais de treinamento do Magazine Luiza, com o altruísmo que estimula os voluntários do Carrefour e com o “encantamento” de clientes praticado nas Lojas Renner.
Pelo que constatei, por meio destas três portas de entrada do “sagrado”, as companhias focalizadas instituíram um novo espírito do capitalismo, ancorado na religiosidade. Fazendo uma analogia com a evolução do capitalismo que emergiu na era moderna como atual, é como se agora estivéssemos observando, em pleno século 21, uma versão pós-moderna da ética protestante que mudou a face do desenvolvimento econômico ocidental, no século 19.
A agregação de valor aos negócios, motivada por este “novo espírito”, ocorre permeada pela religiosidade, ao facilitar o cumprimento dos objetivos econômicos das empresas pesquisadas, bem como reforçar a visibilidade de sua reputação via cidadania corporativa. Na prática, significa o desenvolvimento e a aplicação constante de “tecnologias” inusitadas de gestão, como fazem as empresas pesquisadas, ao apostar na religiosidade como diferencial competitivo na relação com os concorrentes.
O livro também reduz a escassez de trabalhos acadêmicos que analisem o cotidiano das organizações no País, em cenários de mudança. A obra contribui para um diálogo interdisciplinar mais profícuo entre a Administração e a Antropologia, ao fornecer subsídios para que esta aproximação floresça, resultando novos estudos sobre os significados construídos socialmente no ambiente corporativo, via cultura organizacional.
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