Artigo

O mundo em pé de guerra

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Num informe publicado no dia 22 de abril, o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) chamou a atenção para o aumento das tensões e da insegurança no planeta em razão da disparada nos gastos militares. Os dados levantados mostram que, em 2023, os dispêndios mundiais com equipamentos bélicos totalizaram US$ 2,43 trilhões, representando um crescimento de 6,8% em relação a 2022. 

Ocupando a liderança disparada dessa lista, os Estados Unidos sacaram, da sua máquina de fazer dinheiro, US$ 910 milhões para alimentar o próprio complexo industrial-militar. Controlado por um punhado de grandes empresas, o setor bélico se converteu num dos principais atores políticos do país — que, sob a sua influência, opera a todo vapor como uma economia de guerra. Explico: ao incitar ou provocar conflitos entre os países, apoiar ou promover guerras, a sua elite político-econômica fatura com a venda de armamentos, bem como aquece os setores produtivos e de serviços associados. Além disso, ao usar a velha estratégia do “dividir e conquistar”, mantém a sua influência nas diversas regiões do mundo, o que favorece a exploração dos recursos alheios de maneira altamente vantajosa.

Acompanhando ou reagindo a esse movimento, os demais países também aceleraram os investimentos militares. Impulsionados pela guerra na Ucrânia e a política desenhada em Bruxelas, os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) aumentaram significativamente os gastos — alguns deles, como a minúscula Estônia e a napoleônica França, já bradam cânticos de guerra direta contra a Rússia. Na Ásia, em sintonia com o jogo de contenção da China pelos norte-americanos, Japão e Taiwan, por exemplo, mobilizaram vultosos recursos (US$ 50 milhões e US$ 16 milhões, respectivamente).

Ocorre que essa nova corrida armamentista impõe ameaças à segurança mundial ainda maiores do que as enfrentadas no período da Guerra Fria. Agora, além dos arsenais nucleares — inclusive, mais disseminados —, uma variedade inovadora de armamentos convencionais de alta precisão e impacto destrutivo estão em desenvolvimento (muitos já em pleno uso). Mais ainda, as infinitas possibilidades de aplicação das recentes tecnologias, em especial a Inteligência Artificial (IA), às operações de guerra vêm alterando, de forma drástica, as táticas e as operações no campo de batalha, nivelando o poder de destruição de forças militares que, até então, eram muito assimétricas.

O problema central é este: como pôr fim à tal insanidade quando a economia dos países ocidentais hegemônicos, sob a liderança norte-americana, depende diretamente das guerras e de relações imperialistas? Há poucos dias, o Congresso dos Estados Unidos deu provas de que dificilmente abandonará a economia de guerra. Apesar da resistência de grande parte da bancada do Partido Republicano, que votou dividida (98 a favor, 109 contra), os parlamentares aprovaram um pacote de quase US$ 61 bilhões destinado à concessão de um novo “auxílio-militar” aos principais aliados no atual contexto geopolítico: Ucrânia, Israel e Taiwan.

À Ucrânia, que já perdeu a guerra, mas segue dizimando a própria população desnecessariamente no campo de batalha, serão destinados USU$ 61 bilhões. Cerca de metade desse valor encherá os bolsos do complexo industrial-militar estadunidense, pois corresponderá à reposição de materiais de guerra já fornecidos (US$ 23 bilhões), ao financiamento de atividades operacionais e de inteligência realizadas pelo Pentágono e a CIA na região (US$ 11 bilhões) e à manutenção do programa de treinamento e assessoria ao exército ucraniano, sob a responsabilidade do Departamento de Estado.

Para Israel, que já violou toda uma lista de regras internacionais, resoluções e dispositivos dos direitos humanos na dizimação de Gaza, receberá mais de US$ 26 milhões. A parte destinada à ajuda humanitária (US$ 9 bilhões) não poderá ser usada pela UNRWA, a agência da ONU para os palestinos — e, certamente, não compensará em quase nada os outros US$ 17 bilhões do pacote voltados ao apoio militar às forças armadas de Israel; os US$ 5,2 bilhões à reposição e a ampliação do sistema de mísseis e foguetes; e os US$ 3,5 bilhões à compra de armamentos avançados e o aumento da produção bélica local. Isto é, por um lado, os Estados Unidos dão as armas para o massacre, por outro, despejam sacos de farinha para os que teimaram em sobreviver.

Para Ásia-Pacífico, serão destinados US$ 8 bilhões. Submarinos, armamentos, treinamentos conjuntos e expansão ou aprimoramento de bases militares estão no pacote. Além das Filipinas, Taiwan é central nesse movimento de contenção da China. O primeiro país, que era uma colônia norte-americana de 1899 até 1945, continua enredado na própria geopolítica, com bases e exercícios militares combinados na região. Taiwan, que os Estados Unidos reconhecem formalmente como parte da China, está se transformando, cada vez mais rapidamente, na Ucrânia asiática, conforme os planos de confrontação com a nação chinesa para 2026.

De fato, a hegemonia almejada pelos Estados Unidos, desde o fim da Segunda Guerra, potencializada pela dissolução do bloco soviético nos anos de 1990, tem como doutrina, até aqui inabalável, o bloqueio de qualquer potência regional emergente — e, ainda mais, de potências regionais que representem a formação de um mundo efetivamente multipolar. Ameaças mais imediatas (China, Rússia e Irã), ameaças até aqui controladas (Alemanha e Índia) e ameaças potenciais (Brasil, Indonésia e África do Sul) devem ser enfrentadas seja como for, inclusive com guerras híbridas e convencionais diretas e indiretas.

Num memorando enviado ao presidente Lyndon Johnson, em 3 de novembro de 1965, o então secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert McNamara, ao dar um panorama das ações empreendidas no Vietnã, àquela altura, ressaltou que a estratégia consistia, sobretudo, em conter a China. Lá pelas tantas, no entanto, o seu argumento se expandiu a ponto de deixar nítida a linha política que até hoje pauta a política externa do país, deixando claro que não é por mero acaso que o mundo está em pé de guerra:

“Temos uma clara visão de como os Estados Unidos devem progredir, assim como a respeito da necessidade de que a maioria do restante do mundo siga na mesma direção, caso queiramos alcançar o nosso objetivo nacional. O papel que herdamos, e escolhemos, para nós mesmos no futuro é o de estender a nossa influência e o nosso poder a fim de frustrar ideologias que são hostis aos nossos objetivos de mover o mundo, da melhor maneira possível, na direção que preferimos. Os nossos objetivos não podem ser alcançados e o nosso papel de liderança não pode ser desempenhado se a alguma nação poderosa e virulenta — seja a Alemanha, seja o Japão, seja a Rússia, seja a China — for permitido organizar a sua região seguindo uma filosofia contrária à nossa”.

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