Artigo

O peixe morre pela boca

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Em várias regiões do interior do Brasil, temos um ditado que é pura filosofia. Aliás, há uns múltiplos pares de anos, eu cogitava – um tanto vagamente, devo confessar – escrever um texto com interpretações de ditados populares pela ótica da teoria política. Lembro-me de um deles, em particular: “a necessidade faz o sapo pular”! Joia pura! Quantas “lições” de política prática e reflexões teóricas daria para extrair desse manancial de sabedoria! Por enquanto, o sapo e outros tantos bichos que habitam esta fauna de provérbios continuam lá na mata, desperdiçados. Outro deles, que também vem bem a calhar é: não cutuque a onça com a vara curta. Na verdade, o melhor seria: não cutuque a onça! De forma alguma!

Bueno, mas antes que eu me perca nesta densa vegetação das digressões, voltemos ao adágio, muito conhecido, aliás. Lá vai: “o peixe morre pela boca”! Um diamante dos provérbios populares! Recorro a ele não por mero acaso, a propósito de reminiscências, mas para moldurar os bélicos acontecimentos envolvendo a Rússia, a Ucrânia, a Otan e, em especial, os Estados Unidos, o pivô de tudo isso. Como sabemos, em situações de conflito armado, os fatos costumam ser as primeiras vítimas fatais. Como o fruto nunca cai longe da árvore (outro ditado!), a maior de todas as batalhas é a das informações (frutos) produzidas pelos meios de comunicação (árvores) vinculados, cada qual, às partes envolvidas. Armamento poderoso! Guerra psicológica! Guerra cognitiva! Piscou, já era! Sigamos atentos: “um olho no peixe, outro olho no gato!” (de novo!).

Voltemos. O peixe: o padrão da política externa dos Estados Unidos. A boca do peixe: Woodrow Wilson, o seu 28º presidente, que cumpriu dois mandatos consecutivos, de 1913 a 1921.

Wilson era um cientista político de grande destaque no mundo acadêmico – ajudou a fundar a Associação Americana de Ciência Política, em 1903, e foi um dos seus presidentes, foi reitor da Universidade de Princeton e escreveu vários livros e artigos que ainda são referência nos estudos constitucionais. A sua carreira política teve início quando governou o estado de New Jersey, entre 1911 e 1913. Durante a sua estadia na Casa Branca, teve de lidar com a Revolução Russa, a Primeira Guerra Mundial e o arranjo do novo mundo do pós-guerra. A participação de Wilson na Conferência de Versalhes foi decisiva para o estabelecimento da Liga das Nações, que, embora tenha sido rejeitada pelo parlamento do seu país, foi uma das razões que o levaram a receber o prêmio Nobel da Paz, em 1919.

De início, Wilson era contrário à entrada dos Estados Unidos no conflito, assim como a maioria da opinião pública. Ataques de submarinos alemães a navios mercantes norte-americanos mudaram tudo – ele não apenas alterou a sua percepção sobre a política de neutralidade que vinha sendo adotada, como promoveu uma drástica mudança da posição estadunidense nas relações internacionais.

Na base ideológica de fundação das colônias e, depois, da república independente, sempre houve a crença de que aquele era o povo escolhido por Deus para realizar um destino transcendental na história da humanidade. Porém, esse excepcionalismo deveria se expressar mais pelo exemplo de uma postura democrática do que pela interferência em outras nações; daí a política externa calcada mais fortemente no princípio da neutralidade que vigorou até aqueles anos da Grande Guerra. A partir de Wilson, porém, essa missão divina passaria a se exprimir por meio de intervenções indiretas e diretas – os Estados Unidos seriam mais do que o farol da liberdade e da democracia no mundo, seriam o próprio vento a soprar as velas dos barcos estrangeiros à deriva, rumo à civilização.

No dia 2 de abril, de 1917, imbuído desse propósito, Wilson fez um pronunciamento histórico no Congresso norte-americano. Tratava-se do pedido de autorização parlamentar para ir à guerra contra a Alemanha, em nome da liberdade e da democracia (isto soa familiar?). Em sua visão, o mundo era um ambiente muito perigoso para a democracia, o bem mais precioso da cidade prometida, cuja guarda havia sido confiada aos Estados Unidos da América. Em termos mais pedestres, os norte-americanos deveriam ser o xerife desse Velho Oeste das relações internacionais.

Dentre outras coisas, Disse Wilson:

“Nações democráticas não infiltram espiões em seus Estados vizinhos ou fazem intrigas para criar tensões críticas em temas que lhes podem render alguma oportunidade para golpear ou conquistar. O engendramento de tais planos de enganação e de agressão, levados a cabo de geração a geração, só pode prosperar e ficar sob o manto das sombras com a opacidade das cortes ou com a proteção das confidencialidades que cercam uma classe minoritária e privilegiada.

“Aceitamos este desafio de propósito hostil porque sabemos que, em tais governos, que seguem tais métodos, jamais teremos um amigo; e que, na presença do seu poder organizado, sempre à espreita para buscar objetivos que desconhecemos, a segurança para os governos democráticos do mundo não estará assegurada. (…) Agora, estamos contentes por ver os fatos sem qualquer ilusão, por lutar pela liberação dos povos e pela paz final do mundo.”

“O nosso objetivo é reivindicar os princípios de paz e justiça no mundo contra o poder egoísta e autocrático (…). Não temos fins egoístas a servir. Não desejamos conquistar nada, nenhum domínio. (…) Não somos nada mais do que os defensores da democracia”. O mundo deve se tornar seguro para a democracia.”

É mesmo, o peixe morre pela boca. Wilson, se vivo fosse, talvez declarasse guerra contra o seu próprio país! Pensando cá com meus botões, desconfio que a real tarefa seja tornar a democracia (norte-americana) segura para o mundo! Isso é urgente. Ainda mais agora que o caldo entornou pra valer: cutucaram a onça com a vara curta. Ou melhor, o urso. E contra a sabedoria convencional, que já alertava: don’t poke the bear!

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