Artigo

O perigo de se pensar a partir do umbigo

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

“(…) Evitai-os. Porque estes tais não servem a Cristo, nosso Senhor, mas ao próprio ventre, e com palavras melífluas e lisonjeiras seduzem os corações simples.”

Romanos 16: 17-18.

Outro dia, li um comentário de uma cientista política[1] que afirmava que Bolsonaro teria se tornado a “ilustração perfeita” do “populista de direita” e que a única coisa que destoava deste figurino seria a defesa da austeridade econômica, que caiu por terra no atual governo. E continuou com a afirmação de que ainda se impressionava com quem acreditou que Bolsonaro e sua turma teriam se convertido ao neoliberalismo.

O que me deixou impressionada nas declarações da cientista, além da utilização muito imprecisa de conceitos e teorias (mas são sempre os outros os ideólogos, não é mesmo?!) foi o incômodo com a crença de que Bolsonaro não seria um neoliberal.

No momento em que li os comentários, fiquei com vontade de sugerir um curso intitulado “Como Defender Austeridade Econômica para os Outros e É Aí que Está o Sintoma do Neoliberalismo”[2]. Também fiquei com vontade de escrever sobre a imprecisão do termo “populismo de direita”, mas deixarei para outro momento. Na coluna de hoje, vou introduzir pequenos comentários entre a possível associação entre extrema-direita e neoliberalismo.

É verdade que grande parte de jornalistas e da mídia classificou Trump e Bolsonaro como fenômenos populistas em reação contra o neoliberalismo. No entanto, já há pelo menos 15 anos um conjunto de pesquisas demonstrou como este raciocínio se baseia em premissas falsas[3]. A definição de que o neoliberalismo é um conjunto básico de ideias no qual as fronteiras seriam obsoletas e que a economia mundial deveria substituir os Estados-nação também é falso. Basta observar os fenômenos sociais com um pouco de atenção para notar que alguns grupos importantes desta direita emergente são cepas mutantes do próprio neoliberalismo. Os projetos dos chamados “populistas de direita” provêm do mesmo roteiro que vem sendo seguido faz mais de 50 anos (vide ditadura de Pinochet no Chile)[4].

O neoliberalismo, muitas vezes, foi considerado um conjunto de soluções, um plano para destruir a solidariedade e o Estado de bem-estar social. O Consenso de Washington, criado em 1989, é o exemplo mais citado como receituário neoliberal: uma lista de deveres a serem seguidos e observados pelos países em desenvolvimento, que vão desde reformas fiscais até privatizações, bem como aberturas comerciais de todo tipo. No entanto, engana-se quem pensa que uma maior intervenção do Estado na economia se opõe ao neoliberalismo. O quadro das obras daqueles considerados neoliberais fornece um diagnóstico bem mais complexo, e se quisermos entender as manifestações da extrema-direita, é preciso estudá-las com mais atenção e entender que enxergar a ruptura entre esta e os neoliberais implica perder de vista suas continuidades elementares.

Quinn Slobodian[5], assim como Dardot e Laval[6], afirmam que os neoliberais são aqueles que se organizaram na sociedade Mont Pelerin. Sem grandes rodeios, essa sociedade sempre defendeu, ao longo de sua história, as restrições da democracia e do sufrágio universal. E todos os seus adeptos sempre entenderam que seria fundamental para a execução do projeto as reestruturações do Estado e da sociedade com base em um ponto de vista demofóbico. 

Um dos principais representantes do neoliberalismo, o economista alemão Wilhelm Ropke, defendeu abertamente o apartheid sul-africano. Inclusive, foi um grande promotor das teorias biologistas racistas que argumentavam que a herança genética ocidental era uma pré-condição para o funcionamento da sociedade capitalista.

Slobodian[7] cita o caso de Václav Klaus, que, na década de 1990, como ministro das Finanças, primeiro-ministro e presidente da República Tcheca e membro da Sociedade Mont Pelerin, foi um firme defensor da “terapia de choque”[8], combinando a demanda por um Estado forte e a incognoscibilidade do mercado. Na década seguinte, tornou-se um negacionista das mudanças climáticas e, em 2010, começou a exigir o fim da União Europeia, o retorno do Estado-nação e políticas anti-imigração. Em nenhum momento, Klaus rompeu com o movimento neoliberal organizado, bem como apresentou, recentemente, na Sociedade Mont Pelerin, uma palestra sobre “a ameaça populista à boa sociedade”[9].

Estas figuras não são exceção entre os neoliberais; o próprio Hayek se tornou cidadão britânico e escrevia contra políticas migratórias. Podemos citar várias situações de ideólogos neoliberais ligados a movimentos xenófobos, sexistas e racistas, para não mencionar o apoio aos movimentos fascistas da Aústria e da Grã-Bretanha, além do apoio incondicional e explícito a toda a operação Condor, que produziu ditaduras sanguinárias em toda a América Latina.

Guéguen[10] vai apontar que o neoliberalismo, ao contrário do que se apregoa, é uma estratégia de defesa incondicional do mercado e de combate dos ideais de igualdade em todas as suas formas. E esta estratégia precisa de um Estado forte e violento, pois é esse Estado que deve defender o predomínio das leis de mercado, custe o que custar. Neste sentido, o neoliberalismo é menos uma filosofia econômica e mais uma doutrina de ordem e de criação de instituições esvaziadas de participação popular.

Alliez e Lazzarato[11] ressaltam que o neoliberalismo retoma a tática de guerra capitalista de 1870 que pôs fim à Comuna de Paris e que desembocou em um projeto de ordem total que unificou o tripé: Estado, guerra e capital. E é fundamental observar como esta técnica associa ciência e produção voltadas à destruição. Neste sentido, o neoliberalismo retomaria a mesma estratégia de defesa da financeirização e do monopólio e oligopólio capitalistas, além da mundialização pela guerra. Esta história de que os neoliberais defendem a livre-concorrência e a liberdade é conversa para boi dormir, diz Lazzarato. Defendem, sim, além da guerra externa, a guerra interna (neocolonial, racista e sexista).

Para Guéguen[12], a estratégia de guerra civil contra determinadas populações, intrínseca ao neoliberalismo, demonstra que fenômenos como Trump e Bolsonaro não são formas desviantes mas sim coerentes com essa história.

A partir de tantas pesquisas e fatos históricos, penso nos comentários de alguns cientistas políticos. Afinal, para onde estão olhando quando fazem observações completamente incongruentes com os fenômenos sociais. Não sei se olham para cima, para os lados ou para baixo. Só acho que, às vezes, o mais importante é não fixar o olhar no próprio umbigo.


[1]     https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/tres-anos-de-destruicao-bolsonaro-acha-pouco-e-quer-mais.html. Comentário de Daniela Campello.

[2]     Neste sentido: Blyth, Mark. “Austeridade: a história de uma ideia perigosa”. Autonomia literária, 2017. Lembrar que, nesta semana, Bolsonaro sancionou o orçamento da União para 2022 com cortes significativos na Saúde, na Educação e na proteção dos povos indígenas e quilombolas, bem como reforçou a área de segurança em R$ 1,7 bilhão e o fundo eleitoral (secreto) em R$ 4,9 bilhões. Isso que é um neoliberal.

[3]     Há uma imensa bibliografia que estuda o neoliberalismo. Alguns livros estão citados aqui mas o conjunto de obras, pesquisas e estudos é imenso.

[4]     Aqui não é só a colaboração do Guedes que precisa ser lembrada. Mas o projeto de Pinochet pela Família, Pátria e Deus. Que reste bem claro que em nenhum momento a turma do Bolsonaro precisou ser convertida. Estão na orgiem do neoliberalismo. Ver em A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo (1o capítulo – Chile, a primeira contrarevolução neoliberal) de Dardot, Pierre; Guéguen, Haud; Laval. Christian e Sauvêtre, Pierre.  Ed. Elefante, 2021.

[5] Slobodian, Quinn. Globalists: The End of Empire and The Birth of Neoliberalism. Harvard University Press, 2020, e ainda: Slobodian, Quinn; Plehwe, Dieter; Mirowski, Philip. Nine lives of Neoliberalism. Verso, 2020.

[6] Dardot, Pierre; Laval, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai sur la Societé Néolibérale. Découvert, 2010.

[7] Slobodian, Quinn. Globalists: The End of Empire and The Birth of Neoliberalism. Harvard University Press, 2020, e ainda: Slobodian, Quinn; Plehwe, Dieter; Mirowski, Philip. Nine lives of Neoliberalism. Verso, 2020.

[8] Klein, Naomi. La Stratégie du Choc: La Montée d’un Capitalisme du Désastre. Babel, 2010.

[9] Slobodian, Quinn. Globalists: The End of Empire and The Birth of Neoliberalism. Harvard University Press, 2020, e ainda: Slobodian, Quinn; Plehwe, Dieter; Mirowski, Philip. Nine lives of Neoliberalism. Verso, 2020.

[10] Dardot, Pierre; Guéguen, Haud; Laval. Christian e Sauvêtre. A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo. Elefante, 2021.

[11] Alliez, Éric; Lazzarato, Maurízio. Guerras e capital. Ubu, 2021.

[12] Dardot, Pierre; Guéguen, Haud; Laval. Christian e Sauvêtre. A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo. Elefante, 2021.

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