Artigo

O que significa renovar na política?

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
Marjorie Lynn
coordenadora de Educação do RenovaBR e mestranda em ciência política pela UFG.
V
Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
Marjorie Lynn
coordenadora de Educação do RenovaBR e mestranda em ciência política pela UFG.

Vamos fazer uma retrospectiva de 25 anos para falar sobre renovação política no Brasil. O que você entende por renovar quando o assunto está associado ao que alguns costumam chamar de “classe política”? Ou se preferir, ao volume de candidaturas disponíveis para o eleitorado em cada eleição? O senso comum tende a crer que a renovação estaria associada à ideia basilar de que, em contraste ao fato de que “os políticos são sempre os mesmos”, novos atores deveriam ocupar espaços. Vamos desmistificar algo aqui: não são sempre os mesmos. O que mais existe no Brasil é gente nova tentando vaga de representante político. Isso se dá por diversas razões que vão muito além do simples desejo de “entrar para a política”. Vai da pureza do sonho de “ajudar o povo” ao devaneio ilusório de “arrumar um emprego fácil”. Acredite: nada é mais difícil do que lidar, dentro de si e pelas ruas, com a falsa imagem de que político é quase onipotente. Também vai do preparo técnico à estratégia de marketing, ou das criminosas candidaturas cítricas de mulheres para o preenchimento de cotas de gênero à bizarra estratégia de servidores públicos que simplesmente querem uma licença remunerada de candidato para ajudarem outras candidaturas em nome de sonhos pessoais, ou para tirarem férias ao redor do mundo. Candidatura carrega, literalmente, de tudo. Sigamos.

Entre 1998 e 2022, com dados do TSE que podem variar entre as bases consultadas, um total de 1,2 milhão de pessoas diferentes tentaram vagas na política brasileira. De vereadores, a imensa maioria, ao posto máximo no Planalto. É muita gente. É como se a valores correntes quase 1% do eleitorado desejasse uma das pouco mais de 70 mil vagas “de políticos” – mais de 58 mil vereadores, mais de 11 mil prefeitos e vices, 1.059 deputados estaduais, 513 deputados federais, 81 senadores, 54 governadores e vices, e os dois agentes no Executivo federal, o presidente e seu vice. Note: mais de um milhão de opções espalhadas por cidades, estados e no país. E sabe quantas candidaturas em todo esse período? Um total de quase 2,9 milhões, ou seja, cada pessoa em média se candidata pouco mais de 2 vezes para algo. Resultado: em 25 anos, com 13 eleições, reclamar de renovação num universo que tenta em média te representar duas vezes é algo falacioso. Mas vamos aprimorar esse discurso.

Talvez o que as pessoas reclamem é que por mais que existam milhares de opções, são sempre os mesmos que tendem a ganhar. Aqui uma pesquisa mais acurada por parte do eleitor e o próprio sistema eleitoral, sobretudo o proporcional, somado ao pluripartidarismo mostrariam que o que não falta é novidade. Deixaremos esses cálculos de lado aqui, mas podemos garantir: se o argumento for este, então a renovação teria que ser explorada sob duas lógicas: distribuição mais equilibrada de recursos dentro dos partidos e capacitação. Guarde este segundo ponto, ele é o cerne de nosso texto. Em relação ao primeiro, realmente temos que admitir que as pesquisas mostram que quanto mais poder e controle partidário um agente possui, mais ele tende a controlar recursos que contribuem para a sua permanência na política, e no Brasil isso por vezes se espraia para familiares e grupos politicamente poderosos. E agora? A alternativa aqui é apostar que a vida intrapartidária e o tempo de dedicação à política têm um peso imenso nas estratégias dos atores que desejam jogar bem este jogo. Notou? A política não é a arte do fácil, o ambiente que recebe de braços abertos arrogâncias ao estilo: “isso é um antro de pilantragem, mas eu sou diferente e ganharei a eleição para mostrar que consigo fazer melhor”. Tal pensamento heroico é romântico e frágil, ele menospreza quem investe tempo, conhecimento e dedicação à política. E tende a frustrar quem vence com essa mentalidade isolada ou a mexer com o ego de quem perde para quem “considera pior” do que si. Terapia!

Assim, o que significaria renovar? A busca por heróis, mitos, lacradores, brocadores etc. é só mais uma armadilha pueril e perene de partes de uma sociedade que culturalmente quer “se livrar de um problema” ao votar, delegando responsabilidades à lenda de plantão – e são muitas na nossa história e no nosso presente.

Pois bem, renovar é aprimorar, ressignificar, educar e preparar. Assim, uma ONG chamada RenovaBR, a exemplo de outros projetos desse tipo, deixa de ser um “simples estímulo” à vida eleitoral para se consolidar como Escola. É isso mesmo. Mas por quê? Histórica e filosoficamente, quando o termo Democracia tinha outro significado, e palavras como governo, Estado e povo tinham sentidos muito distintos ao que conhecemos hoje, Aristóteles e Platão evidenciaram a relevância do preparo e do conhecimento para o exercício da política. Mesmo totalmente fora do ambiente democrático que inexistiu na Terra por mais de um milênio e meio, temos plena consciência do quanto os príncipes demandavam conhecimento para manterem o poder, diria Maquiavel – favor não confundir com o fofo pequeno príncipe. Mas quando governos representativos começam a fazer sentido numa órbita embrionária de democracia, entre os séculos XVII e XIX, não faltaram defesas consistentes na filosofia do quanto os governantes demandavam preparo. Figuras como Tocqueville, Montesquieu, os Federalistas, Jefferson e Stuart Mill contribuíram muito para a percepção do quanto políticos precisavam ser preparados e do quanto era necessário o cuidado com a capacidade intelectual de escolha pelo eleitor. Onde isso se perdeu? Quanto mais o sufrágio foi sendo estendido, afastando o cidadão de qualquer exigência para votar que não fosse a idade e, em certa medida, a nacionalidade, mais nos distanciamos da ideia de que a educação política fazia sentido. Será memo?

A Democracia no século XX não é retratada por pensadores que nela creem sem que duas dimensões sejam trazidas: a participação, que varia de acordo com o modelo democrático adotado na sociedade; e a educação, sendo que Bobbio a chamou de promessa não cumprida da Democracia, enquanto Downs afirmou que informação para a tomada de decisão política é essencial, em alusão à teoria econômica. Assim: eleitor desinformado e deseducado é problema fulcral à democracia. Mas e “o político”? A pergunta vem com aspas, pois conceitualmente não haveria razão, em pleno século XXI, para separarmos políticos e eleitores.

Parte-se de dois pressupostos para não se exigir das candidaturas algo muito diferente de alfabetização e um pouco mais de idade dos eleitos, o que varia de acordo com o cargo desejado. Primeiro porque democraticamente é o eleitor quem decide, ou seja, mesmo que escolha por alguém menos letrado, o direito de querer ser escolhido e de escolher deve vigorar. Assim, qualquer déficit trazido pela escolarização do postulante, se não for exigência do eleitor, seria compensado por máquinas de servidores do Estado e por assessores governamentais. Segundo porque, em tese, todos teriam informações suficientes e capacidade de levar responsabilidades de representação adiante, afinal de contas, na Constituição Federal está escrito, no artigo 205, que cabe ao Estado formar para o exercício da Cidadania. Não vamos entrar nesse mérito, mas se tivéssemos esse preparo, seria mesmo necessário que fundações partidárias explicassem algo sobre sistema eleitoral pros filiados? Bastaria que fossem centros de doutrinação ideológica, algo que por sinal, para consolidar legendas, é urgente e necessário.

Assim, se você crê que infelizmente o Estado ainda não cumpre sua função de preparar, via escola, para o exercício pleno da Cidadania, e se entende que políticos precisam estar preparados, terminamos dizendo: renovar é voltar para a filosofia, caminhar alguns séculos para trás e cumprir a promessa de formar, capacitar, alinhar, ajustar e conscientizar – eleitores e candidatos. Isso cumpre parâmetro democrático, e deve nos afastar de um último ponto fundamental: não venha com a falácia de que todo político deveria ter formação superior para representar. Isso é uma aberração. Não que estudo não seja algo relevante, mas destacamos que na Câmara dos Deputados, por exemplo, nunca tivemos menos de 80% dos representantes com diplomas desde o século XIX. Assim: preparo político não precisa ser diploma universitário, e capacitação estratégica para a vida no universo político é, efetivamente, o que entendemos aqui por renovação. Se quer jogar este jogo: prepare-se. Renove-se. E enquanto o Estado não formar universalmente para o exercício da democracia, projetos se destacarão nessa missão de oferecer formação política para aqueles que desejam representar com qualidade.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.