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O rei está morto. Longa vida ao rei!

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

O presidente chileno Gabriel Boric recebeu, no dia 4 de julho deste ano, o esboço formal (borrador) da nova Constituição, que visa substituir a “Carta de Pinochet”, promulgada em 1980. Os chilenos devem votar em plebiscito, a ser realizado no dia 4 de setembro, para adotar o novo texto constitucional elaborado pelos deputados constituintes (Convencionais) eleitos no ano passado pelo “Acordo pela paz social e a Nova Constituição”, de 2019.

Para vários analistas políticos, essa saída institucional foi um lampejo de astúcia dos membros do sistema político tradicional para estancar o Estallido social, que eclodiu nas principais cidades chilenas em outubro de 2019. As manifestações chegaram a reunir mais de um milhão e meio de pessoas que reivindicavam mudanças estruturais em setores como saúde, educação, previdência social e direitos reprodutivos.

A Convenção Constitucional foi eleita exclusivamente para elaborar o texto constitucional. Ela teve representação paritária, com número igual de homens e mulheres entre os 155 membros da Convenção. Entre estes, 17 assentos foram reservados para os povos indígenas. A eleição para definir os convencionais foi realizada por listas distritais, sem exigências de vinculação partidária para as candidaturas. Isto resultou na eleição de muitos independentes (30% da Convenção) e de jovens (metade dos convencionais tem menos de 40 anos).

No entanto, o processo de criação da Convenção foi limitado pelo tempo exíguo de trabalho e pelo fato de que os textos da Convenção somente seriam aprovados se tivessem o quórum de dois terços. Também sofriam o controle preventivo de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional chileno. Os convencionais tiveram a árdua tarefa de elaborar um método de decisão capaz de lidar com uma série de instâncias e processos participativos. Muitas propostas foram trazidas via iniciativa popular. Exigia-se um mínimo de 15 mil assinaturas e o apoio de pelo menos oito convencionais para que o texto entrasse em discussão. Para o professor de direito constitucional e membro da Convenção, Fernando Atria, o texto da Convenção poderia trazer muitas inovações. Porém, foi cerceado pela exigência de quórum e pela intervenção do Tribunal Constitucional.

Em 16 de maio, foi entregue o primeiro borrador, que passou pela Comissão de Harmonização e uma série de disposições transitórias. O projeto constitucional ficou, ao final, com 499 artigos (muito mais do que os 120 artigos da Constituição pinochetista), fruto da deliberação de sete comissões temáticas.

A Comissão de Sistema Político Legislativo conseguiu aprovar 34% dos seus textos.  E acabou aprovando uma espécie de bicameralismo assimétrico, com uma câmara política na qual se originam os projetos de lei e uma segunda câmara que, na prática, funcionaria como uma câmara de revisão para quase todos os projetos de lei.

Quanto à forma de Estado, existiram uma série de propostas que não obtiveram o consenso necessário de dois terços dos convencionais, deixando seu destino para leis futuras. Algo inusitado é que a Constituição não prevê em seu texto nem um sistema eleitoral nem um estatuto para os partidos políticos no Chile. Sintoma na Convenção constituinte da descrença do sistema político institucional entre os Convencionais.

Ao mesmo tempo que os sistemas eleitoral e partidário não foram constitucionalizados, a autonomia do Banco Central e os princípios da austeridade fiscal receberam o estatuto de constitucionalidade. O ministro das finanças, Mario Marcel, tem comentado com investidores que o governo de Boric e o texto constitucional seguirão um caminho fiscalmente responsável. “Foram aprovados alguns princípios importantes no texto da nova Constituição, os princípios da responsabilidade e da transparência, e se ratifica a autonomia do Banco Central”[1]. Assim como: “nova Carta aponta para que todas as instituições estatais, em todos os seus níveis, atuem em conformidade com os princípios de sustentabilidade e responsabilidade fiscal”[2]. A lei orçamentária fica ainda sob iniciativa do presidente da República, como na constituição de 1980, e este não poderá indicar novos gastos sem indicar novas fontes de recursos. Assim, o texto da Convenção consagrou a disciplina e a austeridade fiscal.

A “Constituição de Pinochet” trazia o princípio da subsidiariedade, colocava o direito privado acima do direito público e determinava que o Estado não teria responsabilidade direta, e sim subsidiária sobre os direitos básicos de Educação, Saúde e Seguridade Social. O novo borrador confere ao Estado um papel mais importante. De um lado, este permite a realização de serviços privados, mas, de outro lado, determina que o Estado deve responder e garantir a demanda dos direitos sociais básicos. No entanto, a relação e a transição entre o público e o privado ficaram pendentes de legislação futura.

A propriedade e sua função social e o trabalho foram categorias que obtiveram poucas inovações no texto constitucional. Neste ponto, as inovações são muito tímidas se as compararmos, por exemplo, com o texto da Constituição brasileira de 1988.

A comissão do meio ambiente, direitos da natureza, bens naturais comuns e modelo econômico obteve baixa aprovação de suas propostas, apenas 21%. No que tange a mudanças relacionadas aos modelos econômicos, avanços substanciais nos direitos sociais (incluindo o trabalho e a propriedade), muitas das questões não alcançaram os dois terços dos votos necessários para a aprovação. Nesse sentido, o temor da direita, de que o texto trouxesse inovações revolucionárias (que alguns qualificavam de “Chilenezuela”), revelou-se infundado.

O texto da Convenção, por outro lado, consagra o direito do aborto e diversos direitos reprodutivos para as mulheres, bem como menciona o trabalho do cuidado. Ademais, garante a paridade de gênero na maioria dos órgãos colegiados do Estado. Define também o Chile como um Estado plurinacional, que reconhece direitos coletivos às comunidades indígenas e até estabelece um sistema de justiça exclusivo para os indígenas. Esses dois pontos do texto (direito ao aborto e plurinacionalidade) são os que têm servido de base para uma campanha de rejeição ao texto constitucional no plebiscito a ser realizado em setembro.

O candidato da extrema direita que venceu o primeiro turno das eleições chilenas, Antônio Kast, mobilizou seus seguidores para votarem contra o texto constitucional e se definirem como “patriotas” e defensores da família, isto é, contra o direito reprodutivo das mulheres.

Mesmo depois do plebiscito, a efetivação do texto constitucional ficará dependente da articulação com o atual Congresso Nacional chileno, que possui perfil bem distinto dos convencionais. No Congresso, a direita e o centro possuem uma representação muito maior.

Parece que produzir o túmulo do neoliberalismo, nascido na sociedade chilena com o golpe de Pinochet em 1974, é mais difícil do que se supunha. Em todo este processo, a sensação que dá é a de que o novo parece que ainda vai precisar carregar o velho nas costas, mas deve ter muito cuidado para não se converter nele.


[1] www.Hacienda.cl.Noticias.ministromarceyypropuesta.de.nueva.constitucionsemantiene

[2] Idem.

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