Não me pergunte o que penso sobre parlamentares, governadores e prefeitos que juraram marcar presença no ato que Jair Bolsonaro convoca para São Paulo, no dia 25 de fevereiro de 2024. Isso ficará nítido até o fim do texto. Não me questione também sobre minha visão a respeito de segmentos e figuras do universo das Forças Armadas de um país que precisa passar tais instituições e personagens a limpo para escrever uma história democrática digna.
O que infelizmente quero dizer aqui é que tudo o que a Justiça, que também precisa ser revisitada, nos mostrou, nos últimos dias, foi uma tentativa inquestionável de se arquitetar um golpe de Estado no Brasil. E que esse gesto pode servir de combustível para parcelas da sociedade — que despreza a democracia de modo emblemático à luz de medos e de falsas ameaças a valores estruturantes de nosso Estado — legitimarem uma ruptura institucional aguda.
Quero partir de alguns pressupostos para o que tenho aqui a dizer. Este texto não trata do que defendo, mas daquilo que entendo que sejam argumentos que possam passar pela “cabeça” de parte das pessoas que vive clima de cisão política adensada e perene faz, pelo menos, uma década em nossa realidade. Sociedades modernas e, principalmente, capitalistas são constituídas a partir de dois valores fundamentais que as leis buscam garantir ao longo dos séculos mais recentes. São eles: a vida, primeiro, e a propriedade privada. Parte expressiva do que vivenciamos enquanto coletividade está ancorado nesse par, e nossa Constituição Federal de 1988 tem em tais valores elementos inegociáveis. Assim, sociedades se consolidam para que possamos viver e preservar o que temos, ou seja, roubar e matar são crimes abomináveis, pois atentam contra valores fundamentais de nossa realidade.
Nos últimos anos, o desmonte da esquerda no Brasil tem ênfase absoluta em duas narrativas plantadas pela direita radical: a) os governos do PT teriam sido os mais corruptos de toda a nossa história recente; e b) haveria uma ameaça comunista associada, obviamente, a uma estúpida falácia carcomida por décadas e pela ignorância de quem nem sequer sabe definir aquilo que nunca existirá entre nós. Note: seja por uma capacidade extraordinária de expropriar, seja por um princípio utópico e ideológico de “repartir”, a esquerda brasileira ameaça a propriedade, valor elementar à constituição do Estado.
Ademais, diz o universo da direita extremamente conservadora, existiria um compromisso da esquerda brasileira com grupos criminosos que resultaria na liberação de drogas, exacerbação da violência e, consequentemente, atentados em ritmo crescente contra a vida, o que nos faz viver sob um medo galopante. Esse sentimento seria atenuado pela posse privada de armamentos que a esquerda combate e que seria capaz de proteger a família e o bem-estar pessoal, arrefecendo ameaças. Isso tudo, note, faz com que a esquerda seja também uma ameaça à vida.
É em torno de tais pensamentos descabidamente radicalizados de uma parcela voraz da direita, e com base em ações estratégicas, que se consolidariam justificativas basilares para não se permitir que a esquerda voltasse ao poder. E para tanto, com o intuito de legitimar ainda mais um movimento de ruptura institucional, questionar a própria Justiça e toda a lógica eleitoral reforçaria a possibilidade de a direita se manter no comando da Nação. A isso, qualquer dicionário de política respeitado chamaria de “golpe de Estado”, mas, para afastar as tratativas dizimadoras da democracia desse fantasma que volta a nos assombrar quase 50 anos depois da aberração que rompeu o status quo no País, os mesmos que chamaram 31 de março de 1964 de “revolução”, se perguntam: onde se tentou dar um golpe? Onde estavam as armas? Quem seria levado ao poder?
Golpes não se dão com armas e derramamento de sangue, em muitas nações, faz décadas, e a fatídica reunião ministerial de 2022, filmada, deixou evidente quem estaria no poder até que ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) fossem presos com representantes supremos do Poder Legislativo — na verdade, apenas um deles, pois o outro foi poupado dos arroubos — para que “novas eleições” fossem realizadas. Assim, vamos ligar os pontos: se tudo o que está descrito acima faz sentido para você, ou seja, se a vida e a propriedade são os bens maiores que estão sob intimidação severa; se a esquerda no Brasil é a ameaça efetivamente incorporada contra esses valores; e se tudo isso justificaria a existência de um golpe de Estado que dizime a democracia, desrespeite as eleições e empurre atores simbólicos do Estado para a cadeia, você deve reconhecer algo: há potencial para você estar na Avenida Paulista, em São Paulo, no dia 25 de fevereiro, apoiando o protagonista de uma tentativa tresloucada de ruptura traumática. O seu ódio à esquerda é tão expressivo que justifica o seu desapreço à democracia em nome de ameaças infundadas e de medos exacerbados. Segunda-feira, dia 26, leia com carinho e empatia: o ideal seria procurar um terapeuta.
Mas como chegamos até aqui? Primeiro, cristalizando a cisão ideológica que vem se aprofundando desde, pelo menos, 2014. Isso ultrapassou os campos eleitoral, político e partidário das diferenças de interpretação sobre a realidade e se alojou no comportamento de longo prazo, no consumo, no convívio e nas escolhas. Diante desses aspectos, a democracia perde parte expressiva do próprio sentido. Parte dos valores que marcaram a sua construção contínua durante os anos 1980, do último século, se perderam. E esse resultado só foi possível por causa de uma miopia quase arrogante de quem chegou ao poder naquela ocasião: faltou cultura democrática para além de movimentações populares, sobrou crença de que a efervescência das ruas se manteria como legitimadora da democracia e, principalmente, fez falta uma política imediata de educação capaz de marcar, de maneira absoluta e formal, a importância da democracia para as nossas realidades política e social a partir das escolas e da formação. Assim, se, para parte dos brasileiros, o bem material é mais relevante do que a oportunidade de escolher rumos de forma livre em termos políticos — e existe uma guerra irreparável do bem contra o mal —, a existência da democracia está mais ameaçada do que nunca.
Longe de mim me fiar ao discurso sórdido de quem prega anistia aos golpistas a esta altura em nome de uma falsa pacificação, depois de mais uma intervenção sórdida de pequenos grupos fardados que sempre protagonizaram rupturas e ameaças desde a Independência. No entanto, definitivamente, o que a Justiça traz à tona contra Jair Bolsonaro não será apenas parte de processos que podem puni-lo, somando-se à condenação no Tribunal Eleitoral por tentar sensibilizar a comunidade estrangeira sobre fraudes eleitorais nunca comprovadas — o que também é parte da arquitetura golpista. O que estou aqui a dizer é que o vasto e sólido material das investigações servirá de combustível para parcelas agudas de uma sociedade que entendeu o quanto o Estado zela pela vida e pelos bens, mas não compreendeu que a esquerda é apenas uma opção, e não uma ameaça mais mordaz que a própria direita.
A democracia é o que nos garante escolhas, e, talvez, por tais escolhas existirem sob determinados limites, é mais do que esperado que, qualquer que seja o resultado de uma eleição neste país, a propriedade e a vida estarão conceitualmente resguardadas. Mas é justamente a crença nisso que está em jogo — e, a partir de então, Deus se torna maior que o Estado, e seus falsos representantes passam a se autoproclamar guardiões da salvação. Bolsonaro, ou ao menos o seu abantesma, ainda assombrará aqueles que creem na democracia. Contudo, Bolsonaro, o mito, ainda encontrará respostas em parcelas da sociedade incapazes de se livrarem das armadilhas estúpidas de um populismo torpe e capaz de criar ambiente para se compreender que a defesa da propriedade e da vida está acima da democracia, a qual, justamente, é o que nos garante TUDO ISSO. Leia e releia: é a democracia, e não um falso profeta, que garante a vida e a propriedade no Estado brasileiro.
Antes que eu me esqueça: a esquerda é corrupta, bem como a direita também é, assim como tenho absoluta certeza de que a violência — e, sobretudo, o crime organizado no Brasil — é um negócio sofisticado e lucrativo que beneficia milhares e irriga campanhas e mandatos no interior de governos de diversos partidos do espectro ideológico. Assim, se nos sobra medo e respostas fáceis nos milagres prometidos por um golpista, infelizmente, nos falta crença na democracia, na política e, principalmente, na capacidade de termos Justiça para nos preservarmos enquanto sociedade.
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