O intuito deste texto final de 2023 é tentar juntar pontos relevantes para a compreensão da complexidade da atuação política do Supremo Tribunal Federal (STF). Vou partir de duas hipóteses: a primeira, reafirmada seguidas vezes pela Ciência Política, na voz de quem estuda as supremas cortes pelo mundo; e a segunda, bastante polêmica e capaz de gerar ruídos que, esperamos, sejam interpretados à luz do debate republicano e democrático — algo difícil na nossa realidade.
A parte pacificada, ou seja, a primeira hipótese: o STF é e sempre foi um órgão político, a começar pela natureza constitucional de moderação de poderes. Ademais, pelo envolvimento do Executivo e do Legislativo na sua composição, bem como pela narrativa que envolve a escolha dos membros mais recentes, que variam entre os “terrivelmente evangélicos” e os “comunistas”, a despeito de capacidades técnicas. No entanto, é político principalmente pela maneira como atua no desenho institucional brasileiro, que lhe empresta papel decisivo em temas que há muito as pessoas imaginavam, inadvertidamente, estar restritos aos desempenhos de Legislativo e Executivo. Este primeiro (o parlamento), em alguns casos, se acostumou a trocar parte de seu amplo poder institucional por “pequenas” vantagens individuais, aprovando as agendas do segundo e esperando que o Judiciário, em tom crescente nos últimos anos, ficasse com o ônus — e, por vezes, até mesmo com os bônus — de decisões políticas. Assistimos hoje ao Legislativo buscando retomar certo protagonismo frente ao Executivo, mas, sobretudo, para os fins dessa reflexão, diante de um Judiciário que não parece disposto a renunciar ao espaço que conquistou, convertendo uma relação dotada de certas cumplicidades em conflito intenso.
A análise da série histórica do Índice de Governabilidade (I-Gov), da 4i, realizada pelo cientista político José Mario Wanderley Gomes Neto, ilustra de forma emblemática dois fenômenos essenciais de serem compreendidos ao longo dos últimos 30 anos, no sentido de se atestar a atividade política da Corte Suprema. O primeiro: olhando para ações diretas de inconstitucionalidade que envolvem o Poder Executivo nacional, o STF dos primeiros anos de Fernando Henrique Cardoso era suficientemente dócil a ponto de emprestar 100% das decisões em favor da Presidência, em posicionamento político que pode se justificar pela tradição de mais de 20 anos de ditadura em lógica path dependence alterada nas décadas seguintes. O segundo: o volume de ações dessa natureza envolvendo o Poder Executivo aumentou de forma avassaladora a partir do governo Temer, lançando luz sobre um protagonismo que se opôs a papel discreto até 2000, tornando-se mais e mais intenso desde então. A combinação entre posição política central e volume de chamamentos à atuação do STF explica a primeira hipótese aqui destacada. É político.
A segunda hipótese é polêmica. Estamos em fase de adaptação, e alguns atores não compreenderam aquilo que significa a atuação politicamente destacada da Corte Suprema do País, que repetimos: é um órgão político na imensa maioria das democracias do planeta. Assim, o STF quer jogar sem ser incomodado, na posição que veio a ocupar com a anuência consentida (ou não) do Legislativo, do alto da própria percepção de que é técnico o suficiente para não ser questionado. Nem uma coisa, tampouco outra: é político e deve ser questionado. A esse ponto extremamente polêmico, as respostas do Judiciário dirão: questionável, sim, mas dentro do rito processual e seguindo os padrões de formalidade. A partir disso, o STF se torna alvo de pedidos formais de revisão (etc.) e as responde. Não! Não estamos a falar sobre questões técnicas. O STF se manifesta de maneira informal, e questionável do ponto de vista constitucional, a partir de decisões questionáveis e, sobretudo, por meio da fala individual de seus membros — até mesmo nas redes sociais. Alguns ministros, dotados de vaidade quase doentia, são palestrantes em centenas de eventos, dão entrevistas tratando de assuntos que julgam e ultrapassam o que parece mais razoável em termos de individualismos e convicções que transcendam as suas responsabilidades. São políticos.
E isso é indiscutível. Mas estão preparados para tanto? E este é o ponto polêmico: parece que não. Quase ninguém está. O Legislativo age de forma errática na retomada de um possível protagonismo. O Senado, por exemplo, nitidamente não está, pela forma como corrobora escolhas do Poder Executivo para o organismo maior do Judiciário e pela maneira como os trata. Parece um tabu imaginá-lo convocando ou cassando um ministro do STF. Por quê? Nunca assistimos a um processo de cassação de um membro do STF pelo Senado, absolutamente soberano do ponto de vista legal para tanto. E o próprio STF deslegitima o Senado nas suas atribuições. Os ministros não conseguem dialogar em tom democrático quando são contrariados ou desafiados, dando à palavra “Corte” um sentido de realeza nada republicano.
Ilustram no presente, tais percepções, falas intensas do atual presidente do STF. O ministro Barroso, diante do papel legal do Senado em debater limites para a Suprema Corte, perde parte da razão quando diz que projetos desse tipo afrontam a democracia. Não afrontam. É fato que parte expressiva dos atuais senadores é pouco preparada para tal construção e parecem guiados por um sentimento de vingança ou conflito que possam turvar uma discussão essencial ao amadurecimento das instituições do País, mas foram eleitos pelo desejo popular, possuem tal poder e em nada desafiam a democracia quando buscam discutir limites para um STF político e ativista. Ademais, o ministro citado vai mais longe, criticando quem afirma que existe, justamente, tal ativismo na Justiça. Existe e não é pequeno, em todas as suas instâncias de atuação. Tanto é verdade que, em dezembro de 2022, o próprio STF, de forma equilibrada, tentou regular parte dessa postura que o Senado busca agora debater. Se isso não existisse, por que o STF teria agido faz um ano? Percebe? Exemplos às centenas, aos milhares, não faltam de quanto a Justiça brasileira precisa se compreender e atender ao que dela se espera.
Assim, a questão central aqui é: os ministros querem se proteger em lógica corporativista comum, questionável e danosa, exagerando nos argumentos contrários à tentativa de o Legislativo debater o papel do STF? Se sim, erram. Os ministros não têm preparo para debates republicanos com a sociedade e, sobretudo, com os representantes eleitos? Se sim, erram. Os ministros agem assim em uma defesa política do status quo? Se sim, podem até não errar ao se defenderem, mas corroboram os argumentos centrais dessa reflexão, a saber: atuam politicamente e reforçam a segunda hipótese aqui apontada de que não entende, não reconhece ou pouco democraticamente não está apto ou disposto a debater o seu papel político.
Quem parece mais apto a essa interpretação é o próprio Executivo em tempos recentes. A vociferação virulenta de Bolsonaro contra a Corte Suprema é criminosa e desnecessária, mas atitude política afrontando organismo político. Os discursos pregando pacificação e aproximação com o STF de Lula, entre a vitória em 2022 e a tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, é parte de uma ação política em relação a um organismo político. As vitórias acima da média que Michel Temer colheu por meio de Ações Diretas de Constitucionalidade (Adins) na Corte Suprema, na sua passagem pelo poder, também é resultado de um perfil discreto de relacionamento político. As escolhas de ministros sempre foram políticas — e as mais recentes, que já totalizam quase metade do atual STF, deixaram isso ainda mais evidente: Moraes por Temer; Nunes Marques e Mendonça por Bolsonaro; Zanin e Dino por Lula. O STF não é político?
Para concluir, um desafio que agudiza o cenário pintado: em ambiente nacional cindido e polarizado, as escolhas para o STF se tornaram infladas por interpretações ideológicas que, por mais que não combinem com certos resultados produzidos pela própria Corte, são inflamadas por parcelas da sociedade. O Supremo, assim, se torna causa e consequência de questionamentos por parte da sociedade em relação ao quê? À política. A opinião pública deixa isso evidente: em histórico de nove medições, com início em dezembro de 2019, o Datafolha indica que apenas em maio de 2020 as avaliações positivas (30%) do STF ultrapassavam as negativas (26%). Por que isso ocorre? Pelo caráter técnico jurídico das decisões que contrariam percepções do senso comum? Oxalá isso fosse verdade e estivéssemos a robustecer o sentido de justiça na nossa sociedade, mas não parece ser essa a interpretação mais razoável. O resultado de dezembro de 2023 é preocupante: 38% avaliam negativamente o STF, enquanto 27% se posicionam positivamente — e politicamente, procurado pela imprensa, Barroso disse que esperava resultado pior. Percebe?
Merece atenção e debate a ideia de que posicionamentos políticos e percepções ideológicas da sociedade sobre a Corte explicam esses resultados. O IPEC, desde quando ainda chamado de Ibope, calcula o Índice de Confiança Social (ICS), que mede o quanto a sociedade diz confiar nas principais instituições. O Poder Judiciário/Justiça, de forma mais ampla e assim tratados nos levantamentos, oscilam com teto de 59% em 2020, e piso de 43% em 2018, no período que compreende 2009 a 2023. O curioso aqui é que, na medição mais atual, em 53% de confiança, o perfil de entrevistado que menos lhes empresta credibilidade é masculino, de meia-idade, rico, do Sudeste e evangélico. Nota? Se parte dessas avaliações tomou por conta a superaparição política do STF e de seus ministros, é o posicionamento ideológico e as insatisfações atuais de parcelas da sociedade que estão avaliando a Justiça por seu caráter: político.
Vamos lidar com isso? Vamos enfrentar democrática e republicanamente esse debate? Vamos impor freio nas posições exageradas da magistratura? Vamos discutir isso deixando asneiras como ameaças liberais e comunistas do lado de fora do espaço decisório? Aceitemos, por fim, que o STF: a) é ativista; b) é crescentemente político; c) é vaidoso o suficiente para não se permitir questionar; d) é ultrarresistente às mudanças debatidas fora de suas frentes; e) pode ser alterado pelo Legislativo; f) deve ser questionado numa sociedade democrática. Aceitar isso nos permitirá evoluir, a despeito da arrogância corporativista da magistratura e de certo despreparo intelectual de muitos dos nossos senadores, democraticamente eleitos.
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