Foi como acordar de um pesadelo que assombrou as conexões do Brasil com o resto do mundo por mais de dois anos. Em sua posse como novo ministro das Relações Exteriores, na terça-feira (6), Carlos França fez um discurso sóbrio e equilibrado, sem menções a teorias da conspiração (nem ameaças comunistas), com foco no que realmente importa para o País no momento: saúde e desenvolvimento sustentável. É um importante passo inicial, mas que ainda depende de mudanças de conteúdo para poder começar a recuperar o status internacional do Brasil.
Depois de mais de 27 meses de uma diplomacia de confronto tresloucada encabeçada por Ernesto Araújo, na qual o Brasil perdeu prestígio e se enfraqueceu em seu posicionamento global, o tom pragmático do novo chanceler parece indicar uma mudança positiva para o País.
Em sua primeira semana, França deixou de lado a retórica belicosa e negacionista do antecessor. Acenou com o reconhecimento de que o Brasil vive um momento muito difícil da pandemia e prometeu engajar o Itamaraty em uma diplomacia da saúde. Além disso, conversou com o ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Wang Yi, para deixar de lado ataques e tratar de cooperação no combate ao coronavírus e na fabricação de vacinas com o principal parceiro comercial do Brasil. Falou ainda sobre a questão ambiental, reconhecendo urgência também nesta área, em um aceno a cobranças que devem vir dos Estados Unidos de Joe Biden na luta contra o aquecimento global.
São impasses que podem parecer óbvios para qualquer diplomacia do mundo, mas que soam como novidade para quem acompanhou o Brasil a partir de 2019. O tom do Itamaraty mudou. A diplomacia de conflito parece ter ficado para trás.
Esta é uma transformação importante. A retórica é fundamental na diplomacia, e a postura e o tom usados por políticos e embaixadores têm influência sobre as relações de um país com o resto do mundo. E a forma como o governo estava se comportando nestes quesitos estavam deixando o Brasil cada vez mais isolado. A sobriedade da estreia de França no cargo é um indício promissor.
Entretanto, é fundamental reconhecer que o tom e a retórica não são tudo em política externa. O conteúdo da diplomacia do País e a essência da sua política interna são ainda mais importantes para determinar o potencial da relação com outras nações.
Mesmo depois da mudança no Itamaraty, por exemplo, o Brasil continuou deixado de fora da primeira viagem para a América do Sul de Juan Gonzalez, responsável por assuntos latino-americanos do governo Biden. O maior país da região ainda não foi considerado sério e importante o suficiente para entrar no roteiro do enviado americano.
A comunidade de política externa das maiores potências globais costuma apontar os assuntos da política interna do Brasil como fonte das limitações do País na sua estatura internacional. Isso indica que trocar de chanceler e mudar o discurso até são atitudes positivas, mas não suficientes para que o Brasil mude totalmente o caminho iniciado pelo governo de Jair Bolsonaro na transformação da Nação em pária internacional.
Como explicou o professor Guilherme Casarões, da Fundação Getulio Vargas (FGV), ao analisar a posse de França, Bolsonaro inaugurou uma política externa populista, familiar e conspiratória. Araújo era o porta-voz oficial dessa diplomacia. Mudar o titular da pasta e o discurso oficial do Itamaraty é importante. Contudo, se for só isso, não será suficiente.
Pouco vai adiantar mudar a retórica se a chancelaria continuar a ser influenciada por um grupo ideológico liderado pelo filho do presidente, bem como a negar, na prática, a ciência no combate à pandemia e ao aquecimento global, apelando ao populismo baseado em conspirações. Vai ser preciso dar passos concretos para mudar o conteúdo da política brasileira e evitar que o País continue se afundando no isolamento e possa recuperar prestígio.
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