Artigo

O touro, o boi e a garota

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

O Touro de Wall Street, conhecido como Charging Bull[1], tem residência no distrito financeiro de Manhattan, na cidade de Nova York. Essa escultura dourada foi idealizada para representar um touro em posição de ataque e simbolizar um mercado financeiro pujante (bull market).

Yanis Varoufakis, ex-ministro grego das Finanças, compara o Charging Bull ao Minotauro de Creta[2], figura mitológica metade homem e metade animal. Reza a mitologia que, para se conter a voracidade da besta, um labirinto foi construído como sua morada e, no interior deste, sua inusitada dieta se dava à base de jovens. Para satisfazer sem maiores problemas o monstro, o rei Minos, após vencer os atenienses em uma guerra, forçava-os a todos os anos enviarem rapazes e moças para serem devorados pelo Minotauro. Historiadores relacionam o mito à hegemonia política e econômica de Creta na região do mar Egeu, onde cidades-estados menos poderosas tinham de pagar tributos regulares em troca de proteção e manutenção da paz.

Segundo Varoufakis, após a catástrofe econômica de 1929, que foi resolvida graças à enorme destruição produzida pela Segunda Guerra Mundial, os idealizadores estadunidenses do “Plano Global” aproveitaram a oportunidade para cristalizar a posição central dos EUA no “mundo livre”. O controle da moeda mundial e a contínua capacidade de reciclar o excedente econômico global, bem como a força no comércio internacional, possibilitaram o fortalecimento do novo Minotauro global.

No entanto, em 2008, o Minotauro é ferido, e não é capaz mais de manter com a mesma astúcia a geração de dinheiro a partir do consumo e do investimento. Apesar de claramente ferido e degradado de sua posição de mito, o Minotauro-Touro de Wall Street ainda mantém seu séquito de fiéis adoradores que sustentam a crença irracional do déficit fiscal e pregam a receita de austericídio do Estado para as massas. Exemplo de adoração totêmica, inclusive retardatária, desse séquito de adoradores no Brasil foi a exibição de um boi de isopor, pintado de dourado, na frente da bolsa de valores de São Paulo.

A economista Leda Paulani[3] aponta as camadas de contradição que marcam o corpo do animal que buscou reproduzir o ícone de Wall Street. “O ouro que o faz brilhar, fulgindo poder e vigor, é só o véu que encobre o frágil interior de isopor”. Segundo Paulani, o boi de isopor representa a crença por parte dos planejadores econômicos da década de 1990 que no Brasil bastaria a criação de uma moeda forte para que os problemas econômicos nacionais se resolvessem. Hoje, o Real vale tanto quanto o isopor do boi. E a economia forte ficou na promessa. O capital financeiro representado por esse grupo de planejadores produziu “ouro de tolo”, que arruinou a economia brasileira e colocou o país nas piores posições na divisão internacional do trabalho.

Os brasileiros de hoje são os jovens atenienses da mitologia grega, que pagam com suas vidas o sustento cada vez mais irracional e insustentável do Minotauro global[4], assim como do boi do agronegócio nacional. Ambos os símbolos representam o regresso brasileiro a condições de subalternidade no mercado internacional de pré-1930.

A pergunta que não quer calar é: afinal, porque alimentamos, sustentamos e cuidamos tanto do Minotauro? É tão forte essa preocupação com o touro de Wall Street que a estátua de uma garotinha destemida, a Fearless Girl enfrentando o Charging Bull foi retirada, pouco mais de oito meses depois de sua instalação[5]. Ou seja, a garotinha destemida deixou os adoradores do touro preocupados com as feridas narcísicas provocadas por sua presença de enfrentamento à virilidade suposta do touro do mercado financeiro. Vale ressaltar que a polícia de New York também precisou agir para proteger o Minotauro-touro durante o movimento de Occupy Wall Street de 2011 a 2014.

É um clássico da teoria política o argumento do direito à defesa relacionado à autopreservação e à proteção do próprio corpo. A questão, então, é qual o corpo que merece ser defendido? Qual corpo possui legitimidade tanto para a autodefesa, como para que as instituições o defendam? A menina e os corpos entregues ao Minotauro para o sacrifício parecem não merecer qualquer tipo de direito à autodefesa, inclusive na pandemia[6]. De Locke a Nozick, o direito de autodefesa está relacionado ao verbo possuir, e inclusive à propriedade do próprio corpo. É a enunciação da frase: “eu possuo” que legitima tanto a autodefesa, como o reconhecimento da dignidade do corpo proprietário. Então, o corpo proprietário, mesmo que de modo totêmico, deve ser protegido e idolatrado enquanto os “outros corpos”, candidatos ao sacrifício, encontram-se expostos, despossuídos de reconhecimento de sua dignidade e de seu direito de autodefesa. No fim das contas, é esta exposição dos “outros corpos”, este sacrifício que protege os corpos proprietários totêmicos.

Nessas condições, como um Charging Bull pode ter tanto medo do enfrentamento à garotinha destemida?


[1]     Ver em https://www.google.com/search?q=Foto+do+Touro+de+Wall+Street&rlz

[2]     Ver https://autonomialiteraria.com.br/loja/teoria-politica/o-minotauro-global-america-europa-e-o-futuro-da-economia-global.

[3]     https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-touro-dourado-e-a-economia-do-boi/

[4] DELUCHEY, Jean-François. Biopolítica e Morte no Brasil: o extermínio da juventude negra (ultra)periférica da Amazônia. Relatório de Pesquisa. 151 páginas. 2019. https://bit.ly/3gnrPgW.

[5] https://www.hypeness.com.br/2017/03/touro-de-wall-street-e-encarado-por-menina-destemida.

[6] DIAS (B.L.C.V.); DELUCHEY (J.-F.). “A guerra revelada na pandemia: Bolsonaro e os corpos descartáveis dos brasileiros” In Novas Direitas e Genocidio no Brasil. Pandemia e Pandemonio Vol. II. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021, p. 158-169.

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