No fim da década de 1970, houve um forte ataque político nos Estados Unidos contra o programa de auxílio a mulheres com crianças, programa de assistência social que, desde os anos 1930, vinha permitindo que as mulheres sem emprego e sem marido recebessem dinheiro público. Melinda Cooper, em sua obra Os valores da família (2019),[1] aponta as razões pelas quais isso aconteceu,[2] apesar do baixo custo orçamentário do programa. Segundo Cooper, na década de 1970, o neoliberalismo e o neoconservadorismo convergiram para atacar o Estado de bem-estar social a partir do argumento de que era preciso restaurar a família como pilar das ordens econômica e social. Então, o plano de ambas as correntes se encontrava na necessidade de disciplinamento social via uma política econômica chamada “austeridade”.
A luta das mães nunca obteve apoio necessário para evitar que houvesse uma guerra perversa contra o programa e contra as próprias mulheres — guerra que, segundo Dorothy Roberts,[3] teve consequências desastrosas, sobretudo, para a comunidade negra estadunidense. Foi “a guerra ao bem-estar social que criou a imagem da mãe negra ‘parasita’ e dependente de programas sociais, viciada em crack e que formava famílias disfuncionais que serviu para justificar a política de encarceramento em massa”.[4]
Para que esse plano desse certo, foi realizada uma série de campanhas publicitárias de pânico moral sobre o aumento da delinquência juvenil, a qual foi atribuída à suposta crise da família, ao aumento da paternidade permissiva, à proliferação dos divórcios e à falta de controle dos filhos em decorrência do trabalho das mães. Todos esses problemas foram inseridos em um discurso maior de “crise de valores”, cuja grande receita apresentada para resolver esses males foi o fortalecimento da família tradicional.
Como muito bem apontou a intelectual argentina Verônica Gago,[5] o argumento econômico imiscui-se a um argumento moral. Afinal, do ponto de vista dos neoliberais e neoconservadores, aqueles que recebiam o subsídio eram indevidamente “premiados” por sua decisão de ter filhos fora da convivência heteronormativa, enquanto as famílias heteronormativas tradicionais se sacrificavam pelos males sociais. Por isso, promoveu-se a necessidade de um programa de austeridade que premiasse os modos de vida “legítimos” e punisse os delinquentes “do gasto público”, arautos de uma vida irresponsável.
O Estado de bem-estar social, então, tornava-se aquele que financiava tanto programas “pecaminosos” que desintegravam a família, como aquele que beneficiava os que não desejavam produzir valores importantes para a manutenção da vida social.
O que é paradoxal é que a família tradicional foi, em boa parte, invenção do próprio Estado de bem-estar social, por meio de medidas como o salário-família ou outros benefícios. No entanto, para os setores mais conservadores, o programa de auxílio às mães foi longe demais porque combinava a redistribuição de renda com os componentes antinormativos ou antipatriarcais que possibilitavam novas formas de vida. De fato, as mulheres não precisavam se casar para obter o benefício. Assim, o programa exibia um transbordamento inconcebível do Estado de bem-estar social, atribuído, em boa parte, às lutas pelos direitos civis e antirracistas nos Estados Unidos.
Para os conservadores, essa expansão precisava ser contida. Cooper[6] apontou que, para os neoliberais e neoconservadores, era fundamental a promoção de políticas sociais que associassem a reprivatização do bem-estar da vida social a formas familiares heteronormativas. Também era muito importante a expulsão das mulheres negras do programa, já que estas deveriam exercer o papel “natural” de mão de obra barata, como trabalhadoras agrícolas ou domésticas. Esses ataques ao programa de auxílio às mães revelam algo que parece ter sido esquecido no atual debate político-econômico. Apesar da forma como são apresentadas, as políticas de austeridade não são escolhas técnicas para os aprimoramentos fiscal e monetário com vistas ao desenvolvimento e ao crescimento econômico. As políticas de austeridade são programas sociais de precarização e homogeneização de formas de vida, que visam subordinar, inferiorizar e submeter corpos não brancos, não masculinos e não metropolitanos.
Os programas políticos de austeridade se escondem sob o manto da democracia formal para obrigar os trabalhadores e, no geral, a força de trabalho mal remunerada, racializada, generificada e invisibilizada a uma condição de passividade, impondo não somente a fragmentação social, mas também a homogeneização de uma única forma de trabalho e de vida. A austeridade funciona de uma forma disfarçada, e a maneira mais eficaz e sub-reptícia de impô-la é a de inserir esse corte do orçamento na própria Constituição. Dessa maneira, o ataque ao Estado de bem-estar social aparenta ser uma questão meramente técnica, ficando, assim, mais difícil e complexo aos cidadãos se oporem aos programas de austeridade.
Segundo Clara Mattei,[7] podemos observar a utilização dos programas de austeridade como apaziguador da população desde a Itália de Mussolini. A história, afirma Clara, desmonta a tese de que o capitalismo precisa de “menos Estado” e de maior concentração do poder nas instituições privadas. De fato, a austeridade exige a intervenção estatal para manter o próprio modelo econômico funcionando — e, contraditoriamente, quanto menos democrático foi o governo, mais sucesso tiveram essas intervenções, a exemplo do Chile de Pinochet.
O que normalmente dá-se para acreditar é que a austeridade é “menos Estado e mais mercado”. Na verdade, é o mercado que exige sempre do Estado que este resolva suas contradições internas e seus impasses. Por isso, o projeto de austeridade não significa menos Estado. É o Estado agindo de maneira classista, racista e patriarcal. Em consequência, toda uma série de políticas são promovidas pelo Estado para tentar reduzir as alternativas de formas de vida e submeter os corpos à expropriação e à exploração sem alternativas. O discurso político-econômico hegemônico afirma que as políticas de austeridade são simples políticas fiscais, mas isso não se atesta. Estas não tratam apenas de cortes nas despesas estatais, mas também de escolhas políticas muito mais abrangentes de que a mera fiscalidade. Elas defendem que se cortem as despesas com saúde e educação públicas, mas apoiam gastos militares e resgate de bancos.
Políticas de austeridade aumentam impostos sobre as pessoas comuns e o consumo, mas não a herança e os dividendos de ativos financeiros. Políticas de austeridade defendem o aumento dos juros, que não somente atrapalham as pessoas que fazem hipoteca como também as que precisam pedir crédito para o sustento cotidiano. O aumento da taxa de juros gera o aumento do desemprego, o que contribui para diminuir o poder de barganha dos sindicatos e do trabalho organizado. Juros altos significam trabalho mais barato. Por isso, os ataques de austeridade foram sempre a resposta governamental usada quando os trabalhadores conseguiam se organizar e pensar em outros modos de gestão da economia e da vida social. Também por isso, a desregulamentação trabalhista e a precarização do emprego industrial são consequências diretas dos programas de austeridade.
Assim, essas políticas existem para garantir a ordem da reprodução social do capital. Existem para garantir a manutenção da dominação hetero, patriarcal e colonial. Assim como promovem uma subjetividade de devedor impotente e desvinculado das redes de solidariedade social. Isso é evidente na forma como as pessoas internalizam essas políticas traduzidas no ódio aos mais fragilizados, especialmente os imigrantes. Austeridade é uma formidável tecnologia de captura: face à austeridade, os corpos parecem se entregar sorridentes ao abate.
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