Em dezembro escrevi nesta coluna um texto intitulado “O eterno protagonismo militar em nossas vidas”. O intuito era mostrar, com base na biografia de Getúlio Vargas escrita por Lira Neto, algumas discretas semelhanças entre o ambiente político de 1950 e aquele que vivemos hoje. No centro das atenções a nociva, para padrões democráticos e republicanos, e insistente presença da farda na realidade política nacional. Num dos parágrafos do artigo eu dizia: “o fantasma dos quartéis é, hoje, aparentemente, mais uma ameaça e uma sombra do passado do que uma instituição capaz de atentar contra a ordem pública”.
Infelizmente o que vivemos no último domingo, dia 8 de janeiro, me faz revisar com tristeza tais percepções. Quero me desfazer de termos como “aparentemente” para caracterizar a ideia de “ameaça” e “sombra do passado”. Sem generalizar, e ainda crente na existência de servidores públicos contratados e mantidos com dinheiro de impostos para o cumprimento da lei e manutenção da ordem constitucional das forças armadas, sinto informar que uma sequência de fatos sugere ser impossível dissociar os militares de tudo aquilo que ocorreu em ameaça às instituições que caracterizam o Estado Democrático de Direito brasileiro. Esse texto não é uma acusação, mas a formulação de uma ideia em tempos de uma liberdade de expressão que merece limites, mas tem sido tresloucadamente defendida por todo tipo de asno. Eu, aqui, vou assumir tal condição: me leia como se eu fosse um asno. Partamos de alguns pressupostos.
O primeiro é: o Brasil viveu uma tentativa de golpe de Estado em janeiro de 2023. O segundo é: os militares acobertaram por 70 dias movimentações nas portas dos quartéis, em locais que sequer carros podem parar. Circule pelas bases onde as pessoas estiveram reunidas nas principais cidades do país: em todas elas você verá placas com aquele E de “estacionamento” sobreposto por um X que indica que ali nenhum veículo fica. Agora tente armar barraca, instalar banheiro, servir refeições e organizar uma comunidade alternativa na frente dos quartéis. Isso só dará certo se de lá de dentro partir uma ordem que diga: “deixem eles aí”. Assim, a ideia é basilar: a conivência, a associação, a parceria são indissociáveis.
Agora vamos para o terceiro elemento dessa história: tais aglomerações foram criadas, indiscutivelmente, com base num argumento de questionamento ao resultado das eleições presidenciais, algo que representa desafiar a Constituição, as leis e as organizações formais, sobretudo o Poder Judiciário e a vontade popular. Mas vamos além: somado ao motivo ilícito que corrompe a ordem pública, no íntimo dessas comunidades alternativas passou a ser gestado um grande conjunto de planos terroristas. Vamos fazer uma diferenciação livre aqui: quem se instalou na porta dos quartéis foram golpistas. A partir de 12 de dezembro, o modus operandi da atuação desses criminosos deixa de lado a ideia de golpe, para se enquadrar na ideia de terrorismo. Exatamente isso: o ensaio terrorista vivido no dia da diplomação da chapa vencedora do pleito presidencial alterou o status da movimentação na frente dos quartéis.
A partir disso, obviamente, passaram a conviver sob um mesmo teto de plástico de barraca de churrasco alguns tipos diferentes de “gente”: os tradicionais idiotas, os oportunistas e os criminosos. Mas como conivência também é crime, idiotas e oportunistas passam a dançar sob a mesma música do terrorismo. Resultado preliminar dessa reflexão: os comandantes de cada um desses quartéis teriam que ser presos, julgados e condenados por acobertarem o que todos sabiam: o estímulo à atitude criminosa de investir contra leis e organizações formais da sociedade brasileira. É simples desse jeito. Mas quem tem coragem de fazer isso? É rara qualquer punição severa para farda e toga nesse país. Mas vamos além.
Os comandantes dessas unidades militares poderiam utilizar como argumento de defesa que cumprem as ordens do chefe supremo das forças armadas, levado ao poder pelo voto popular e chamado tradicional e legalmente de Presidente da República. Nesse caso, até a manhã do dia 1 de janeiro de 2023, com espaço de tempo iniciado em 30 de outubro de 2022, o responsável por esse tipo de parceria entre terror e forças oficiais brasileiras, atendia pelo nome de Jair Messias Bolsonaro, que está auto recolhido na Disney World, onde coincidentemente atuam figuras simpáticas como os Irmãos Metralhas e o Pateta. Ele, se comprovada a suposta autorização para a montagem e manutenção dos acampamentos, seria o responsável maior, restando verificar se legalmente governos podem envolver forças de Estado em seus devaneios. Resposta afirmativa: culpa apenas dele. Resposta negativa: culpa de comandantes e do presidente. Mas vamos adiante, pois ainda falta saber o motivo disso tudo.
O mais óbvio é: a esquerda é o mal maior do mundo, o comunismo uma ameaça, a tradição da família é subvertida pela ordem progressista, a corrupção é maior nos governos transparentes do que naqueles obscuros etc. Nada disso convence. Tudo isso é balela, é crendice. A Democracia é soberana, e em quatro anos do ex-governo abundaram assombros que, protegidos por sigilos questionáveis e pela lentidão incômoda da justiça, nos levarão a fatos tenebrosos. Mas então o que nos conduziria ao terrorismo verificado em 8 de janeiro? Primeiro: apego pelo poder associado ao uso da força como tradição, gerando truculência criminosa no país da impunidade. É assim que nos vemos, e é isso que é sentido. Resultado: convicções pessoais são mais intensas do que responsabilidades legais. Mas se assim foi, por que parte dos soldados não se envolveu diretamente no golpe de Estado que vivenciamos?
Resposta: isso deixou de fazer sentido à luz da atual realidade global. E assim, o roteiro tem que ser alterado. Desqualifica-se o processo eleitoral e investe-se pesado na disseminação de notícias falsas, no bombardeio ideológico extremado à direita, no uso tresloucado das interpretações religiosas em nome de um Jesus Cristo que, transfigurado em narrativas doentias não existe, fazendo com que cidadãos frustrados, maltratados e com baixo poder de cognição sirvam de soldados para uma guerra que pouco lhes beneficiam em termos reais. Mas é pouco. Em cargos de livre provimento, Bolsonaro nomeou mais de seis mil militares da ativa e da reserva em seu governo, beneficiando suas famílias e envolvendo outras tantas pessoas.
Consegue dimensionar o que isso significa quando um grupo político diferente assume o poder? Imagina o que é retirar a renda extra desse contingente sem qualquer tipo de sofrimento para a cabeça de quem está acostumado a reagir com violência e truculência à derrota? A conta começa a fechar. Parte expressiva desse movimento está associada à dor da perda de espaço, dinheiro e poder. Some a isso as intensidades alucinantes e o espírito presente no título do meu texto de dezembro: o eterno protagonismo militar em nossa realidade política. Pronto. Mas lembre-se: eu sou um asno. Não me leve a sério.
Para fechar. Diante de tudo isso, a pergunta: quem será punido dentro dos quartéis? Ninguém. Basta intensificar o semblante de ameaça, aquecer a lógica corporativista na união entre militares responsáveis e aqueles que apoiam o terrorismo, subir o tom de voz e negociar uma grande anistia, ao menos para os fardados. Quem pagará a conta? Meia dúzia de civis que estão no poder em processos que nunca terminarão, e algumas centenas de otários hipnotizados por versões alucinantes da verdade. Então devemos ter dó dessa horda de krill engolida pela baleia da barbárie?
Não. Quando o transe vira terrorismo, em parte acobertado pelos militares estimulados por um presidente que afirmou que a democracia só existe quando as forças armadas querem, e garantiu que só a morte ou um Deus transfigurado o tirava do poder, o aconselhável é punir com o rigor da lei e educar, quem ficar de fora da cadeia, para que isso não se repita. A prova maior de tudo o que estou dizendo nesse desfecho ocorreu no fim da noite de domingo. Quando os ocupantes dos prédios públicos foram carinhosamente retirados da Praça dos Três Poderes pela polícia algo chamou a atenção – utilizando aqui um adjetivo amoroso para dissociar o que vemos contra pobres açoitados pelo Estado nesse país, do que vimos sobre os protegidos dos militares que incorporaram o papel de terroristas no domingo.
A cena a qual me refiro foi vivida nos arredores da Feira do Terrorismo – apelido carinhoso da estrutura gigantesca montada em torno do principal quartel do DF. A Polícia Militar impedida de entrar na festa por correntes humanas de soldados do exército e alguns blindados de combate. Por quê? Comandantes afirmaram que ali era área militar, e eram eles que cuidariam do desmonte ordenado pela nova equipe presidencial, depois de algo entre 70 e 63 dias de convivência, parceria e cumplicidade. À noite, assim, ainda tomaram uma sopinha. No dia seguinte, na manhã de segunda, manifestantes foram acordados e confortavelmente alocados, sentados, em ônibus – em condições infinitamente melhores que aquelas ofertadas aos trabalhadores que se aglomeram nos modais das capitais cotidianamente.
O que foi deixado para trás, como barracas e estruturas, foi dobrado delicada e gentilmente por militares de baixa patente. A cena é um clássico da conivência. O golpe, este do domingo dia 8 de janeiro de 2023, foi frustrado e envergonhado. Mas as perguntas mais desafiadoras são: até quando? E, por que, o novo governo não ordenou o desalojamento no dia 1 ou 2 de janeiro? Perguntemos isso para José Múcio Monteiro, ministro da Defesa, que em seu discurso de posse, talvez por medo, respeito, covardia, prudência ou sabedoria afirmou que historicamente os militares SEMPRE estiveram ao lado da democracia. Claro. Viva a anistia, o perdão, a parceria, a cumplicidade, a “democracia” que as fardas generosamente nos permitem viver e o Estado brasileiro.
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