Em seu livro A grande transformação (1944) [1], o economista húngaro Karl Polanyi apresentou como um processo histórico, típico do capitalismo, uma dupla transformação. Primeiro, as sociedades capitalistas incentivam todo o processo de mercantilização. Em seguida, em reação à mercantilização de tudo, surgem reações sociais que se organizam em grupos que buscam segurança e fuga do medo.
A organização das demandas desses grupos que visam a reagir ao movimento de totalização mercantil pode variar em muitos aspectos. Historicamente, Polanyi aponta que há grupos que se organizam baseados em pautas progressistas. Estes se articulam a partir de demandas de defesa da universalização de direitos e de luta pela igualdade contra a expropriação mercantil. Paralelo a isso, surgem também grupos que se organizam em torno de pautas regressivas que defendem demandas excludentes e xenófobas.
A pauta dos grupos progressistas, como a dos regressivos, são respostas a esta lógica de expropriação mercantil, na qual há as transformações do trabalho, da terra, do dinheiro e dos corpos em mercadorias. Essas transformações são, geralmente, realizadas por meio da desregulamentação dos mercados laborais e financeiro, da grilagem de terras e do desmantelamento dos direitos mais básicos.
Por outro lado, como a organização desses grupos demonstra, variam as respostas à insegurança e ao medo produzidos em reação a estas modificações, que se articulam em diversas formas, produzindo a organização de grupos distintos no espaço social. Tais organizações se arregimentam a partir de suas demandas e pautas, e suas capacidades de mobilização e força decorrem da capacidade desses grupos adquirirem, politicamente, unificação das variadas demandas nas pautas que se tornam naturalizadas e hegemônicas nas gramáticas social e política.
Os êxitos recentes e visíveis da direita e da extrema direita, no mundo todo, sinalizam que os grupos progressistas não estão conseguindo organizar de maneira eficiente as suas pautas, tampouco as respostas oferecidas aos problemas de desestruturação social. Assim, essas pautas não têm conquistado novos adeptos, seja porque não fornecem respostas que gerem segurança para o enfrentamento que a “devastação expropriativa” produz, seja porque não encontram consenso em torno de uma gramática unificadora de suas demandas.
Isso significa que os movimentos progressistas têm menos capacidade de produção de estratégias e táticas de luta para unificar as expressões de descontentamento. Ao contrário, a direita e a extrema direita têm conseguido construir um espaço de “afinidades eletivas” que unificam grupos que, a princípio, se apresentavam como divergentes. Um exemplo claro é a convergência política estratégica de igrejas neopentecostais e igrejas católicas conservadoras no Brasil.
Afinal, os grupos regressivos têm sido mais eficientes na produção de unificação das demandas em torno de seus significantes, até porque contam com o mecenato de grandes empresas e de think tanks bem estruturados internacionalmente. Também conseguiram promover, com mais eficiência comunicacional, a unificação das demandas de insegurança e medo em pautas regressivas e excludentes – apesar de essa insegurança e esse medo terem sido criados pelas políticas que os próprios promoveram.
Os grupos regressivos, inclusive, conseguem emparedar os grupos progressistas em uma atmosfera de expectativas decrescentes. Atordoadas pelas insistentes dissonâncias cognitivas criadas pelas poderosas máquinas ideológicas dos conservadores, as chamadas “esquerdas” ficam acuadas na falta de uma nova imaginação social, ou numa postura estéril de reação em uma batalha perdida por antecipação. O próprio tempo se torna pautado, politicamente, pelos grupos regressivos. Isso fica muito claro quando tais grupos se apresentam como anti-iluministas ou antiglobalistas. A gramática política fica presa ao presenteísmo, pautado nas urgências imediatas do mercado e nas sirenes da sociedade do espetáculo. O mal-estar cultural é assustador. Nada é experimentado ou inventado. Como diz Mark Fisher [2], tudo é repetição cultural de 30 ou 40 anos atrás.
Esta fixação do debate político em uma temporalidade presenteísta é de fundamental importância para a manutenção das estruturas de poder. Isso, porque a fixação hegemoniza a ideia de fim da história e de que não podemos fazer nada para mudar o rumo da vida em comum. Neste sentido, a própria política, enquanto vontade, torna-se impotente. A própria subjetivação política se torna refém do sucesso individual. A miséria do mundo, embutida nas nossas vidas íntimas, nos aparece como resultado dos nossos fracassos enquanto sujeitos empreendedores, e não como realmente são: efeitos de um sistema social profundamente violento e iníquo.
O mundo comum não existe mais. Ele se esgota pelo prisma da sociodiceia liberal-conservadora. Assim sendo, nós, “indivíduos empreendedores”, estamos levados a aceitar o mundo como é apresentado a nós, estimulados a aceitar como fatalidade a dura realidade de ilusões frustradas pelo mundo da política. Sempre ela. Apresentada como maldita e suja.
Sendo assim, os grupos regressivos acabam capturando e mobilizando os desejos pretensamente “autênticos” dos trabalhadores, transformando-os em empreendedores consumistas. A liberdade, a autonomia, a flexibilidade e a experimentação são lidas a partir desta chave de “transformação” do regressivo em emancipatório.
Face ao isolamento e ao medo, os sujeitos dificilmente conseguem produzir espaços de resistência. Muitas vezes, seus corpos se tornam este marco único de defesa pessoal – e até social. O projeto político desses grupos regressivos visa nitidamente à decomposição da solidariedade e à desintegração da capacidade de ação coletiva das classes subalternas, e os grupos progressistas caem nesta armadilha com uma facilidade estonteante.
Um sintoma evidente dessa desintegração, além dos bons resultados eleitorais da direita e da extrema direita, é a utilização, pelos próprios grupos progressistas, de uma gramática da “solidariedade negativa” que se apresenta, por exemplo, nas frases: “Fica ruim para todo mundo, então, você tem que se adaptar também”; ou “Quem não está sofrendo o bastante é privilegiado”. Ambas as frases não somente refletem o uso excessivo do narcisismo das pequenas diferenças, mas também a marcação de decomposição da solidariedade entre classes subalternizadas. Com isso, os movimentos progressistas colaboram para que as antigas formas de solidariedade institucional e amparo comunitário sejam desfeitas, tendo como resultado a privatização do sofrimento e a individualização da angústia, processos que acabam reforçando as demandas, as pautas e a lógica dos movimentos regressivos.
István Mészáros [3] (2002) nos alertou: o capital não é, como muitos afirmam, uma entidade material, ou um mecanismo, mas, sim, uma forma incontrolável de controle sociometabólico. Sua incontrolabilidade advém do fato de ser a mais poderosa estrutura totalizadora de controle que já surgiu na história, à qual tudo deve se adaptar ou perecer, inclusive os seres humanos. O caráter totalizador do capital, aliado ao seu modo de metabolismo socioeconômico, possibilitam a existência de uma correlação entre economia e política antes impossível. Os moinhos satânicos cresceram e se multiplicaram exponencialmente, adquirindo poder de destruição cada vez maior, mastigando todos e quaisquer estilos de vida organicamente estruturados, para substituí-los por outros pré-fabricados, mecanizados e regidos pelo instrumentalismo associado à lógica necroliberal.
Diante desses moinhos, somente nos resta a construção de um imaginário quixotesco lúdico e politicamente radical para criar um novo inconsciente coletivo de frestas do impossível.
* ‘Moinhos satânicos’. Aqui a referência é retirada da obra de Dom Quixote, escrita por Cervantes e retomada como metáfora na segunda parte, item I: O moinho Satânico do livro A Grande Transformação, de Karl Polanyi.
[1] POLANYI, Karl. A Grande Transformação – as origens de nossa época. 3a. Edição, Rio de Janeiro: Campus, 2000.
[2] FISHER, Mark. Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.
[3] MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria de transição. São Paulo: Boitempo, 2002. A citação de dois húngaros não foi desproposital.
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