Esta não é a primeira pandemia que a humanidade enfrenta. Há cem anos uma variante do vírus semelhante ao atual, impropriamente chamada de “espanhola”, matou entre 40 a 50 milhões de pessoas. Elevadas concentrações demográficas, desigualdades sociais, colapsos ambientais e desarticulação política são cenários ideais para catástofres. E desde o começo deste século, as epidemia de Sars, H1N1, Mers e ebola, em diferentes proporções, já tinham ceifado a vida de mais de 200 mil seres humanos. Das diversas formas, a destruição do meio ambiente aumenta o contato do ser humano com animais selvagens e suas patologias. Foi assim com o HIV e a aids, por exemplo.
Nesse momento, a medida racional mais imediata é o isolamento social para retardar a propagação da doença. Isto permite a reorganização do sistema público de saúde e a produção de equipamentos de proteção e respiradores em grande volume, assim como a aplicação de testes em vastos contingentes. Ocorre que enquanto as pessoas não trabalham, elas precisam se sustentar – e para isso seria necessário o estabelecimento de uma política universal de transferência de renda aos que estão fora da força de trabalho involuntariamente. Isso significa que, o problema atual não é somente uma questão de inexistência de uma vacina.
A OXFAM divulgou em janeiro deste ano o relatório Tempo de Cuidar: O Trabalho de Cuidado Mal Remunerado e Não Pago e a Crise Global da Desigualdade, que indicava que os 2.153 bilionários do mundo detinham mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas. Outro dado revelado foi que os 22 homens mais ricos do mundo se apropriavam de mais riquezas do que todas as mulheres que vivem na África. O mesmo estudo ainda apontava que metade da população no mundo sobrevivia com menos de US$ 5,50 por dia. O mesmo estudo ainda revela que a taxa de redução da pobreza caiu pela metade desde 2013. No Brasil, as tímidas medidas de distribuição de renda já foram em grande parte anuladas pelas crises política e econômica, assim como pelas reformas trabalhista e previdenciária. Sem mecanismos para a redução das desigualdades sociais, com ou sem pandemia, estamos indo globalmente para um poço sem fundo. Na contramão, políticas redistributivas são ridicularizadas como populistas ou demagógicas.
Nos Estados Unidos, a taxa de vitimados pelo covid-19 é maior entre os negros, segundo dados oficiais. No Brasil, como mostram os números apresentados pelo Ministério da Saúde, ocorreu uma inversão do perfil social da moléstia, que começou atingindo segmentos com maior poder econômico, e passou a se propagar nas periferias. Em São Paulo a taxa de mortalidade pelo vírus de uma pessoa de cor preta é 60% superior a uma branca.
O enorme poder de contágio do covid-19, pelo ar, se torna ainda mais dramático pelo fato de que um dos vetores de sua propagação são pessoas que não manifestam a doença e que assim não sabem ou podem ser dar ao luxo de não querer saber se estão contaminadas. Se essa moléstia pode causar o mal, mas não a mim ou aos meus, então ela não importa. A eugenia e o malthusianismo sempre foram recorrentes no imaginário das elites brasileiras.
Amplos setores da população brasileira são contra a distribuição de renda, os direitos humanos, a liberdade de imprensa e a igualdade de gênero. Parte expressiva deste mesmo segmento entende que é necessário que se imponha a perseguição aos dissidentes políticos. Mesmo sem covid-19 já pairava em todo o mundo, especialmente no Brasil, o fantasma da intolerância pela via do racismo e da xenofobia. Não é necessário bola de cristal para vermos que em pouco tempo o desespero coletivo se propagará e com ele, a justificativa para uma brutal repressão.
Brecht dizia que infelizes eram as nações que precisavam de heróis. Neste sentido, ao menos no Brasil, a dupla luta, contra o vírus e a tirania, se mesclam em uma causa comum.
Conteúdo publicado na edição 458 da revista PB. Clique aqui.
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