O lugar-comum mais enganoso sobre pandemias é o de que são eventos igualitários ou democráticos. “Estamos todos juntos neste barco!”; ou “O vírus não escolhe quem ataca”. Há, é claro, um pequeno fundo de verdade nestas frases feitas. Entretanto, elas encobrem um fenômeno trágico e já bastante conhecido da literatura especializada. Doenças pandêmicas, assim como qualquer outra, têm impacto negativo muito mais pronunciado nos mais pobres.
Os mais necessitados suportam um fardo desproporcional de morbidade e mortalidade por causa de três desvantagens que se sobrepõem e se reforçam: maior exposição ao vírus, maior suscetibilidade e pior acesso a serviços de saúde.
Maior exposição ao vírus resulta, principalmente, de condições de vida desfavoráveis (superlotação de moradias e falta de acessos a saneamento e água potável), como também de condições de trabalho adversas (informalidade e falta de equipamento de proteção). Além disso, fazer home office simplesmente não é uma opção para grande parte dos trabalhadores mais pobres.
A maior suscetibilidade deriva de piores condições de saúde associadas à pobreza, como obesidade, estresse psicológico, hipertensão, diabetes e doenças cardíacas, as chamadas “comorbidades”. Como já se sabe, pessoas com essas comorbidades são mais suscetíveis aos efeitos nefastos do vírus (como à morte), e essas são mais prevalentes entre os pobres. Por causa desta correlação, há especialistas que propõem a denominação de “sindemia” para a crise do covid-19. Sindemia é uma combinação dos termos “sinergia” e “pandemia”, procurando realçar que é a combinação do vírus com estes outros fatores médicos, sociais e econômicos que tornam a pandemia tão devastadora (Horton, 2020).
O acesso desigual a cuidados de saúde que podem minimizar os efeitos maléficos do vírus é o terceiro e último fator dessa correlação perversa entre pandemia e desigualdade. No Brasil, esse fator é menos nocivo pela existência do Sistema Único de Saúde (SUS), mas aqueles que têm acesso a serviços mais bem financiados e menos escassos da rede privada acabam levando vantagem – também quando contraem o vírus – em relação aos mais pobres.
Pandemias anteriores já tinham exposto esta realidade cruel de forma dramática. Dos 32 milhões de mortes causadas, até agora, pelo vírus HIV, por exemplo, a maioria esmagadora é de pessoas pobres, mesmo nos países ricos. A pandemia (ou sindemia) do covid-19 está simplesmente repetindo a mesma história, o que não deveria (mas ainda faz) gerar surpresa alguma. Estudo recente nos Estados Unidos que analisou mais de 1 milhão de casos e 62 mil mortes em 3.127 municípios detectou que os dois principais fatores de aumento do risco de contrair e morrer de covid-19 foram: nível educacional baixo e ser negro. Ter acima de 65 anos ficou em terceiro lugar (Williamson et. al., 2020).
No Brasil, a pandemia afetou inicialmente os mais ricos, que trouxeram o vírus no retorno de viagens ao exterior, mas o cenário se inverteu rapidamente com a propagação da doença. Em São Paulo, os moradores da Brasilândia, bairro da zona norte com alta concentração de favelas e formado majoritariamente (mais de 50%) por uma população negra, já lideravam as mortes na capital no mês de maio. No Rio, enquanto a favela da Rocinha contava 55 mortos no fim de maio, o bairro de São Conrado tinha apenas três (Gondim et. al., 2020). Estudo mais recente mostra que negros analfabetos correm 3,8 vezes mais risco de morrer de covid-19 do que brancos com nível superior de educação (Batista et. al., 2020).
O direito à saúde, reconhecido na Constituição de 1988, prometeu acesso universal e igualitário à população e promoveu significativos avanços nos últimos 30 anos (Ferraz, 2020). Entretanto, o impacto desproporcional da pandemia nos mais carentes mostra que ainda há muito chão pela frente.
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