Artigo

Pandemia e pobreza na América Latina

Alicia Bárcena
é secretária-executiva da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (ONU)
A
Alicia Bárcena
é secretária-executiva da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (ONU)

A pandemia e suas consequências na América Latina e no Caribe tiveram profundos efeitos negativos em áreas muito mais amplas do que a dimensão única da saúde. Além disso, essas consequências estão se espalhando em paralelo com a duração incerta da pandemia. Aos efeitos na saúde e na vida das pessoas, em que o número de infecções e mortes é muito numeroso na região, verifica-se crises econômica, social e, em alguns casos, política sem precedentes.

Com as informações disponíveis, podemos afirmar que a dimensão desta crise pode ser classificada como catastrófica. De acordo com o Panorama Social 2020 da Cepal, e com base nos resultados da medição da pobreza por renda ali apresentados, observa-se que após mais de uma década de avanços na redução da pobreza e da pobreza extrema, ambas voltaram a crescer na região a partir de 2015. Na América Latina, a pobreza diminuiu de 45,4% da população (229 milhões de pessoas), em 2002, para 27,8% (162 milhões), em 2014. No entanto, a pobreza aumentou em 2015 (29,1% – 171 milhões) e 2016 (29,9% – 178 milhões), estabilizando-se até 2018 (29,8% – 181 milhões). A pobreza extrema também caiu entre 2002 (12,2% da população – 62 milhões de pessoas) e 2014 (7,8% – 46 milhões) e, depois, aumentou a cada ano, atingindo 10,4% (63 milhões) em 2018.

Os dados mais recentes, baseados nas pesquisas domiciliares de 2019, mostram um aumento subsequente da pobreza naquele ano (atingindo 30,5% da população, ou 187 milhões de pessoas) e da pobreza extrema (11,3%, ou 70 milhões). Dos 13 países para os quais é possível fazer uma comparação entre 2018 e 2019, a pobreza foi reduzida em mais de um ponto porcentual em cinco deles (El Salvador, Honduras, Bolívia, República Dominicana e Peru), permaneceu estável em quatro (Brasil, Paraguai, Panamá e Uruguai) e aumentou em quatro outros países (Costa Rica, Equador, Colômbia e Argentina).

Além disso, persistem lacunas importantes nos níveis de pobreza entre diferentes grupos populacionais. Em 2019, a taxa de pobreza era 12,7% maior entre as mulheres em idade produtiva do que entre os homens da mesma idade; maior nas áreas rurais (45,7%) do que nas urbanas (26,9%); e obteve valores bem acima da média entre meninos e meninas de zero a 14 anos (47,2%), pessoas com ensino fundamental incompleto (48,5%) e população indígena (46,7%).

Em 2020, a perda de empregos e a redução da renda do trabalho sofrida pelas famílias, em decorrência da pandemia de covid-19, das quarentenas e de outras medidas implementadas para contê-la, paralisaram parte das atividades econômica e produtiva, afetando especialmente os de baixa renda. As projeções feitas para estimar o impacto da pandemia sobre a renda mostram que a crise de 2020 levaria a um aumento acentuado da pobreza e da pobreza extrema nos países da região.

As projeções de pobreza apresentadas no Panorama Social 2020 foram feitas de duas formas: uma usando um modelo que leva em conta a taxa de crescimento da renda e a mudança distributiva esperada em 2020 (“sem transferências”); e outra baseada num modelo que agrega transferências emergenciais governamentais de dinheiro entregues durante 2020 (“com transferências”).

Na projeção “com transferências”, estima-se que, em 2020, a taxa de pobreza chegaria a 33,7%, e a de extrema pobreza, a 12,5%. Isso significaria um total de 209 milhões de pessoas vivendo na pobreza até o fim de 2020 – 22 milhões a mais que no ano anterior. Desse total, 78 milhões de pessoas estariam em extrema pobreza – 8 milhões a mais do que em 2019. Em termos de índices de pobreza, é necessário voltar a 2008 para encontrar um patamar semelhante (33,5%), o que implica 12 anos de retrocesso. Esse decrescimento é ainda maior no caso da pobreza extrema, pois é preciso voltar 20 anos (até 2000) para encontrar uma taxa semelhante (12,4%).

Os aumentos da pobreza e da pobreza extrema teriam sido maiores se as medidas não tivessem sido implementadas para transferir renda de emergência para as famílias. Projeções que levam em conta apenas o impacto da pandemia sobre o emprego e a renda do trabalho (“sem transferências”) mostram que a taxa de pobreza para 2020 teria subido para 37,2% da população, enquanto 15,8% ficariam em situação de extrema pobreza. Isso significaria um total de 230 milhões de pobres até o fim de 2020, 21 milhões a mais do que o projetado levando em consideração as transferências emergenciais de dinheiro. Da mesma forma, o total de pessoas vivendo em extrema pobreza teria atingido 98 milhões, 20 milhões acima do projetado considerando as transferências emergenciais.

Aqui, na Cepal, falamos da necessidade de uma recuperação transformadora com igualdade e sustentabilidade. Isso implica aproveitar a crise para avançar rumo a sistemas de proteção social universais, abrangentes e sustentáveis no caminho de longo prazo para a construção de verdadeiros Estados de bem-estar social em nossa região.

Para que esta recuperação seja financeira e politicamente sustentável, em primeiro lugar, é preciso construir progressivamente o espaço fiscal necessário a garantir o financiamento de longo prazo para a construção dos Estados de bem-estar, ou seja, sem comprometer os saldos fiscais, porém, um maior gasto social. A segunda, a sustentabilidade política, depende da legitimidade de trilhar este caminho antes – e com os cidadãos.

Ambas as coisas passam por novos pactos social e fiscal. O pacto pressupõe que tais acordos exigirão contribuições de todos os atores, inclusive atribuições importantes de atores poderosos em relação aos seus interesses imediatos, com vistas a uma situação coletiva mais estável, lucrativa, legítima e sustentável para a sociedade como um todo.

Neste sentido, a atual pandemia e suas consequências podem ser vistas como o que alguns historiadores chamam de “conjuntura crítica”, ou seja, um momento de crise profunda que redefine o que é aceitável, mesmo o que é pensável, por pressões, perdas ou riscos extremos que dispõem muitos atores a mudar o status quo, abrindo, assim, janelas de oportunidade para mudanças políticas, econômicas e sociais.

Da mesma forma, esperamos que esta pandemia nos ajude a argumentar a favor da necessidade de todas as pessoas terem acesso a níveis básicos de bem-estar e renda como parte das estratégias para superar definitivamente os crescentes níveis de pobreza e pobreza extrema. Para isso, devemos difundir a necessidade de adoção de pactos sociais e fiscais, rumo a verdadeiros Estados de bem-estar social.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.