Na Copa do Mundo na Argentina, em 1978, o Brasil enfrentava a Suécia. O jogo estava empatado em 1 a 1, quando houve escanteio a favor do Brasil. Zico subiu de cabeça e marcou o que seria o gol da vitória brasileira, no entanto, com a bola ainda suspensa no ar, o árbitro Clive Thomas apitou o fim do jogo antes de a bola entrar na rede. Para além do futebol, o “perigo de gol!” virou expressão popular para nos lembrar das tentativas de manipulação de resultado durante um processo ou jogo no qual haja parcialidade explícita de juízes ou instituições.
Na política, o “perigo de gol!” é usado recorrentemente. No ano de 1958, na França, por exemplo. Em plena guerra de independência da Argélia, alguns generais contrários à descolonização pressionaram o general Charles de Gaulle a assumir novamente o governo francês, com a incumbência de “resolver” a questão argelina e pôr ordem na República (havia “perigo de gol!”).
A volta do general De Gaulle foi efetivada via referendo, em 22 de setembro de 1958, e aprovada também a Constituição (redigida pelo próprio) 12 dias depois, instaurando a atual Quinta República francesa e seu sistema semipresidencialista. Em reação, vários intelectuais franceses denunciaram o “Golpe Legal de Estado” (coup d’État legal) de De Gaulle sobre a República francesa, de tradição parlamentarista.
Entre eles, o famoso Jean-Paul Sartre denunciou que De Gaulle foi conduzido ao poder pelos coronéis de Argel. Esta “Constituição do desprezo”, escreveu o filósofo, “nada mais é que o resultado de um compromisso entre as forças que levaram a tortura ao poder, apoiada pelos senhores feudais de Argel e o grande capital financeiro parisiense. E a aprovação do sistema semipresidencialista representa a articulação entre esses interesses. (…) É preciso consolidar o general de Gaulle como o campo de batalha deles e a Constituição como o lugar geométrico de suas contradições. De resto, eles concordam num ponto: amordaçar o povo” (1).
Melhor mudar previamente a regra do jogo, enquanto o juiz está do nosso lado, de que perder o jogo e ser eliminado! “Perigo de gol!”
Parece que esta estratégia institucional, da direita e da extrema-direita francesas articuladas com seus generais, foi imitada no Brasil. Até as tecnologias de tortura do general Massu, na Argélia, foram aplicadas com determinação, conhecimento e competência pelos nossos generais a partir de 1964.
Contudo, antes, era preciso levantar um “perigo de gol!” face à possível posse do presidente João Goulart, ao aumento das participações políticas popular e sindical e à estratégia de “conciliação nacional”.
Em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, o sistema de governo parlamentarista (o equivalente à proposta atual de PEC do “semipresidencialismo”) foi instituído para limitar os poderes de João Goulart.
Dois anos depois, em consulta popular, a maioria se manifestou pela volta do presidencialismo. Maioria esta que voltou a se manifestar, em 1993, novamente a favor do presidencialismo (com 69,2%), em plebiscito previsto na Constituição de 1988.
Depois da frustrada tentativa de limitação da participação popular por medidas de legalidade duvidosa, medidas mais radicais – com a derrubada de João Goulart por uma junta militar em 1º de abril de 1964 – foram utilizadas (“perigo de gol!”).
Mais recentemente, o ex-presidente Temer (principal “artilheiro” do (gol)pe parlamentar que permitiu a ascensão e o retorno dos “coronéis de Argel”) junto com o ministro Gilmar Mendes (ministro do STF pode legislar assim?) escreveram uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) conjunta para implementar o “semipresidencialismo” como solução para a crise política criada pelo governo (que ajudaram a instaurar).
Diversos cientistas políticos (2) afirmam que a proposta de alteração para o semipresidencialismo não teria o condão de gerar mais estabilidade na relação entre os poderes Executivo e Legislativo, bem como não implicaria mais responsividade e responsabilidade do chefe do Poder Executivo, que ficaria encarregado da escolha do primeiro-ministro (ele já indica o líder do governo na Câmara e no Senado). Se a preocupação é com o trauma de rupturas institucionais causados pelo impeachment, o que garante que os traumas não permaneceriam com a queda dos primeiros-ministros?
Vale lembrar que a alteração do regime de governo estava prevista na Constituição de 1988, com um ritual específico de participação popular. Promover esta mudança sem observância das regras constitucionais, sem participação popular, nas vésperas de ano eleitoral, me lembrou a partida entre Brasil e Suécia. E é assim toda vez que coronéis, ruralistas e grandes capitalistas chamam os juízes e o campo jurídico à sua responsabilidade: “Perigo de gol! Perigo de gol!”
Notas
(1) Ver Sartre, Jean-Paul. “A Constituição do desprezo”. L’Express. Paris, n. 378, 11 de setembro de 1958.
(2) Ouvir, em especial, o podcast com participação de Humberto Dantas.
Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.