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Qual é a utilidade do padrão de cem dias

Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

A ideia do balanço de cem dias de governo remonta à década de 1930, quando Franklin D. Roosevelt assumiu o governo dos Estados Unidos após a grande crise de 1929. À época, o presidente prometeu instaurar as mudanças numa velocidade nunca vista antes disso: “Estou preparado, sob o meu dever constitucional, para recomendar as medidas que uma nação atingida em meio a um mundo atingido pode exigir[1]” [tradução nossa]. As prioridades colocadas por Roosevelt no início de sua presidência eram: fazer com que os norte-americanos voltassem ao trabalho – protegendo a economia e criando prosperidade –, proporcionar alívio aos doentes e idosos e recuperar a indústria e a agricultura.

O presidente convoca, então, o Congresso dos Estados Unidos para uma sessão especial de três meses (quase cem dias), durante a qual apresentou e conseguiu aprovar rapidamente uma série de 15 grandes projetos destinados a conter os efeitos da Grande Depressão. Ocorre que apenas dois ou três desses projetos realmente tiveram origem na Casa Branca. Quase todo o resto se originou no Congresso, e muitos deles, incluindo o alívio federal para os desempregados, estiveram em debate por anos antes desse momento (segundo o pesquisador Patrick Maney).

Em outras palavras, nem o próprio Roosevelt conseguiu corresponder ao padrão que criou para avaliar os primeiros três meses de governo. No mundo das políticas públicas, é difícil pensar numa política de nível nacional que possa ser incluída na agenda pública, que sejam formuladas alternativas, que a decisão seja tomada e que, por fim, a política seja implementada num período de cem dias. Basta pensar no novo ensino médio, que teve as três primeiras etapas vencidas por meio de uma Medida Provisória (MP) e, desde 2016, enfrenta sérios problemas na implementação.

Isso significa que devemos concordar com Donald Trump, para quem os cem dias são um “padrão ridículo”? Não é para tanto. Depois do longo ano de 2022, período no qual a maior parte dos debates políticos girou em torno de agressões pessoais e questionamentos infundados sobre a integridade do processo eleitoral, é uma lufada de ar fresco ver a agenda pública tomada por discussões de temas de políticas públicas. Isto é, a reflexão sobre temas que afetam o dia a dia da população é sempre salutar, bem como uma oportunidade de ouro para o governo avaliar os primeiros passos de acordo com a receptividade da população.

O maior risco das matérias e dos debates em torno dos cem dias de governo é cair no conto do inimigo oculto e de todas as teorias da conspiração que daí podem decorrer. Neste imaginário, o governante tem o poder de fazer tudo que quer com a facilidade de alguém que aperte um botão – e se não o faz, é porque não quer. Daí surge a imagem do político mesquinho e preguiçoso, que não trabalha mais de três dias por semana e esquece da população após eleito.

É preciso levar em conta alguns importantes fatores para avaliar os cem dias de mandato, seja de um presidente, seja de um governador, seja de um parlamentar. O primeiro é que existe um ciclo orçamentário e que é preciso definir o destino de um recurso antes que este exista. Esse ciclo orçamentário é anual; antes disso, tudo o que se pode fazer é mudar as diretrizes. O segundo é que, mesmo que fosse possível que um governante pudesse fazer tudo o que quisesse, sozinho e rapidamente, isso não seria desejável. Os mecanismos construídos na divisão de poderes são assim organizados para evitar que um único indivíduo faça mudanças rápidas e radicais nos rumos do Estado.

  • O desenho das nossas instituições foi feito no contexto do florescimento do liberalismo político (não confundir com liberalismo econômico), que se preocupava com o crescimento exacerbado do Estado sobre as liberdades individuais do cidadão. Isto é, seria preciso criar mecanismos para evitar que o Estado se tornasse totalitário, e a única forma de conter o poder é com outro poder. A noção de contrapeso advirá daí e será a base lógica para os múltiplos desenhos possíveis das relações entre poderes. Em outras palavras, não é bom que um só (ou muito poucos) possa muito.

A ideia de prestação de contas imediatas fazia sentido conjunturalmente nos Estados Unidos de 1933, mas parece pouco útil ao presidencialismo multipartidário do Brasil de 2023, depois de eleições extremamente apertadas e do cenário ideológico de radicalização. Ainda assim, qualquer espaço para balanço de ações possíveis e prestação de contas de representantes eleitos é salutar e desejável, desde que na medida das limitações do padrão de cem dias.

Veja também:

https://www.npr.org/2017/04/21/525110119/president-franklin-d-roosevelt-set-100-day-standard


[1] “I am prepared under my constitutional duty to recommend the measures that a stricken nation in the midst of a stricken world may require.”

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