Artigo

Quando (e como) vai ser o próximo?

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
G
Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Golpes de Estado, tentativas de golpe e autogolpe são fatos corriqueiros na nossa história republicana. A própria República veio a cavalo, escoiceou a monarquia e pôs à frente do governo provisório o marechal que trazia no lombo. Promulgada a Constituição de 1891, realizou-se, como combinado, a eleição indireta que conduziu o mesmo Deodoro à primeira presidência, após tensas escaramuças e acertos entre grupos divergentes, tanto militares como civis. 

Contudo, o governo de Deodoro foi um natimorto. Fricções com as bancadas partidárias no Legislativo o levaram a fechar o Congresso poucos meses depois da posse. Esta flagrante inabilidade política foi o gatilho para a sublevação de unidades da Marinha ancoradas na Baía de Guanabara. Diante das ameaças de bombardeio à cidade do Rio de Janeiro, Deodoro renunciou. O seu vice, Floriano Peixoto, outro militar, não se fez de rogado e logo assumiu o posto, mas não sem enfrentar severas objeções – a Constituição previa a convocação de eleições na hipótese de vacância da presidência se ainda inconclusa a metade do mandato. Não mesmo! Disse o “marechal de ferro”, que fincou o pé no cargo e enfrentou com dureza os opositores e as novas revoltas, desta vez, mais violentas.

Os militares chegariam novamente à presidência em 1910, com Hermes da Fonseca, agora pelo voto direto, e repetiriam o feito outras duas vezes, em 1945, com Eurico Gaspar Dutra, e em 2018, com Jair Bolsonaro. Juntamente com Pinheiro Machado, um conterrâneo gaúcho muito influente na política nacional, Hermes, que era sobrinho de Deodoro, deixou o Ministério da Guerra, de Afonso Pena, para fundar o Partido Republicano Conservador, por intermédio do qual venceu a campanha civilista, de Rui Barbosa, e alcançou a chefia do Executivo. 

Em 1921, quando presidia o Clube Militar, Hermes teve a sua prisão decretada por Epitácio Pessoa, Presidente da República à época, em virtude do seu posicionamento na conturbada eleição de 1922, envolvendo o então candidato Arthur Bernardes. O seu filho, Euclides Hermes da Fonseca, era o capitão encarregado do Forte de Copacabana, que se levantou em rebelião contra o governo. Veio daí a primeira revolta do movimento tenentista, que voltaria à carga em 1924, com a revolta paulista, e, no seu desenlace, com a grande marcha da coluna Prestes, até 1927.

Esgarçado o pacto cooperativo da Primeira República, os militares prestaram o seu apoio à Aliança Liberal, que, sob a liderança de Getúlio Vargas, encetou o golpe de 1930. Júlio Prestes, candidato eleito, não tomou posse; Washington Luís, então presidente, foi deposto e exilado. Tinha início a chamada República Nova, que enfrentaria uma guerra civil, em 1932, adotaria uma nova constituição, em 1934, e esmagaria um esboço de levante comunista, em 1935.

Amplamente apoiado por militares, Vargas aplicou um autogolpe em 1937 – o Congresso foi fechado, os partidos extintos, os governadores destituídos e os resistentes reprimidos. Em 1945, quem diria(?), o próprio Vargas foi deposto, acuado pelos mesmos militares que o apoiavam. Novos tempos! Findada a Segunda Guerra, era a hora e a vez da democracia! Ressurgem os partidos, abrem-se as portas do Congresso, convoca-se uma Assembleia Constituinte.

No mesmo ano, Dutra se elegeria presidente, concorrendo por um dos três principais partidos daquele período – o PSD. Alinhado com o varguismo, este partido e o PTB venceriam todas as eleições presidenciais até 1960, quando Jânio Quadros, contando com o suporte da terceira sigla mais relevante, a UDN, derrotou o famoso Marechal Henrique Lott, da dobradinha PSD-PTB. Lott havia sido crucial para que JK tomasse posse, em 1956, quando os udenistas ensaiaram um golpe contra o resultado das urnas. Como se vê, aquele foi um período conturbado, com sucessivas tentativas de golpe frustradas, inclusive a que levou ao suicídio de Vargas, em 1954.

Neste turbilhão político, a eleição de Jânio parecia finalmente assegurar a ascensão da UDN e de apoiadores ao poder. Não foi por menos que a sua renúncia, em 1961, colocou o País em estado de beligerância – para os udenistas e assemelhados era inadmissível a volta de um trabalhista à presidência, nomeadamente, João Goulart, que só pôde assumir mediante um acordo forçado, que alterou o sistema de governo para o parlamentarismo. 

Após três gabinetes ministeriais instáveis, realizou-se a consulta popular, que fez retornar o presidencialismo, em 1963. À frente do governo, Goulart enfrentou resistências num ambiente cada vez mais assombrado pelo fantasma do golpe. Enfadados com o jogo democrático, que sempre dava vitória aos trabalhistas, militares e civis viraram a mesa em 1964: um golpe de Estado clássico!

Retornada a democracia e comemorados quase 30 anos da Constituição Cidadã, os golpes pareciam coisas do passado. Mas os atribulados anos que se seguiram depois da revolução colorida brasileira de 2013-2016 levantaram suspeitas de que uma nova modalidade de golpe havia sido aplicada no Brasil. Como ponto culminante, em 2018, dois militares chegaram ao Planalto pelas urnas, mas num processo eleitoral repleto de interferências que, provavelmente, tiveram impacto no resultado. Como se isto já não fosse suficiente, agora, às vésperas da eleição de 2022, a intensificação dos ataques à Justiça Eleitoral e as suspeitas lançadas sobre as urnas eletrônicas sinalizam a possibilidade de contestações do resultado das apurações. 

Diante deste quadro, o espectro do golpe de Estado volta a rondar Brasília. Os jornalistas que cobrem a Praça dos Três Poderes voltaram a especular sobre isso mais uma vez há um par de semanas. Todos olham para o Lago Paranoá, veem um bicho com nariz de capivara, olhos de capivara, pelos de capivara, focinho de capivara, e ainda se perguntam: é uma Hydrochoerus hydrochaeris?

Sim, viventes, o que se vê é uma capivara. O problema é que, assim como as capivaras do Paranoá, o golpe não chegou agora, não senhor, ambas as espécies frequentam aquele habitat há bastante tempo. Já tivemos golpes de Estado [1889, 1930, 1945 e 1964], autogolpes [1891 e 1937] e golpes disfarçados [1963 e 2014-2018] – sem contar as diversas tentativas [1922, 1924, 1932, 1935, 1954 e 1956]. Já tivemos golpes com militares e dos militares.

Portanto, dado o nosso histórico, não se trata de perguntar se vai ter golpe em 2022, mas, sim, quando será o próximo e que tipo será dado desta vez.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.