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¿Qué pasó?

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Penso que todos haverão de concordar que o resultado das eleições primárias na Argentina, no mínimo, contribuiu para democratizar o visual de Javier Milei, da coalizão La Libertat Avanza. Todo mundo ficou de cabelo em pé! ¿Qué pasó?

Como pôde empolgar tantos hermanos um candidato estilo TikTok, arremedo de Bolsonaro (barbaridade!), fã de Trump (será que é dali que vem a inspiração para o despenteado do tipo juba de leão?), raivoso que nem cão acuado, torso enrijecido e arqueado, como que pronto para avançar e morder? Como um Frankenstein ideológico, que mistura conservadorismo moral com anarcocapitalismo, ultraliberalismo e libertarianismo, atraiu tantos votos? Como logrou conquistar apoio nas classes mais pobres enquanto fazia troça dos direitos sociais? Como levou parte da classe média a acreditar que a dolarização da economia não é somente a solução para o país, como também uma medida viável? Como tantos eleitores foram convencidos de que ele próprio, El León Milei, não pertence de corpo, alma e rugido à “casta” política que abjurou e prometeu aniquilar? O que deu em tanta gente para confiar num candidato que, como um papagaio boca-suja, repete e repete o bordão “Viva la libertad, carajo!”?

Falso como uma nota de três reais, Milei encarna — com o maior histrionismo — uma personagem mais ou menos comum das lideranças da extrema direita contemporânea. Milei dá voz à compreensível indignação dos argentinos com a política e os políticos, por meio de declarações bombásticas, frases de efeito, caras e bocas ensaiadas e sob medida, seguindo à risca as recomendações do seu ídolo anarcocapitalista Murray Rothbard.* Além disso, conta com o argentino Fernando Cerimedo, um aspirante a Steve Bannon latino-americano, para pôr em prática uma vasta rede de fake news, bots, trolls, influenciadores digitais e de uma sortida cesta de armas e táticas de guerrilha voltadas às redes sociais. Ah, sim, conta também com o apoio de poderosos empresários, como Eduardo Eurnekian e Guillermo Francos.

Assim, abocanhou 30% dos votos na eleição primária de 13 de agosto. Se fosse realizada a dissecação do seu eleitorado, provavelmente encontraríamos o “voto bronca”, que junta os enfadados com “tudo o que está aí”, os que odeiam as políticas de segurança que “protegem os bandidos” e os que estão confusos ou que detestam as políticas identitárias, principalmente de gênero. Ao lado desse eleitor conservador ou reacionário, encontraríamos o “voto ingênuo”, que reúne os que simpatizam com a “autenticidade” e a “rebeldia” de Milei e aqueles que acreditam ser ele o messias que salvará o povo dos flagelos social e econômico. Talvez, em proporção muito menor, encontraríamos, por fim, o “voto ideológico”, reunindo os crentes irrecuperáveis das variadas formas distópicas do capitalismo selvagem. E aqui fica a pergunta mais importante: partindo dessa base eleitoral, Milei conseguirá romper a tradicional disputa bipolar entre a centro-direita macrista e a centro-esquerda peronista-kirchnerista? A ver.

Como a eleição dificilmente será decidida no primeiro turno, temos de avaliar as chances de cada candidatura numa disputa um a um. Milei seria favorito num combate de segundo turno contra Sergio Massa, candidato do atual governo, pois os que votarão na candidatura de direita/centro-direita, de Patricia Bullrich, terão maior propensão a migrar para a extrema direita do que para a centro-esquerda. Se a disputa for entre Milei e Patricia Bullrich, o macrismo teria maiores chances de vitória, pois a centro-esquerda/esquerda tenderia a votar na direita moderada para barrar a ultradireita. Contudo, para assegurar uma vaga no segundo turno, Patricia terá que “dançar o tango”, uma vez que os seus eleitores poderão antecipar o voto útil do segundo turno e, desse modo, escolher Milei já no primeiro. No caso do candidato governista, qualquer cenário de segundo turno será desvantajoso. Se Massa enfrentar Milei, pode atrair alguns eleitores de direita e centro-direita mais moderados e sensíveis ao discurso de unidade democrática contra a ultradireita; mas é provável que a maioria dos que votarão em Patricia no primeiro turno rejeite o peronismo-kirchnerismo a tal ponto que prefira dar o voto a Milei. Se a adversária de Massa for Patricia, pouquíssimos eleitores de Milei escolherão o representante governista, de maneira que a segunda preferência recairá sobre a candidata macrista.

Em suma, a candidatura oficialista de Massa tem alguma chance de chegar ao segundo turno, mas quase nenhuma chance de vencer a eleição; a candidatura oposicionista de Patricia tem alguma chance de não chegar ao segundo turno, mas, se chegar, será a favorita para vencer a disputa contra qualquer um dos dois concorrentes. Milei, por sua vez, tem alguma chance de ir ao segundo turno, com muita possibilidade de perder se disputar com Patricia, e muita possibilidade de vencer caso o concorrente seja Massa.

Vislumbrando a possibilidade real de chegar à presidência, Milei começou a recalibrar o discurso, enquadrando-se no que cientistas políticos argentinos chamam de teorema de Baglini.** Este propõe que quanto mais distante da conquista do poder, mais irresponsáveis são os discursos políticos. Por outro lado, quanto mais provável é a conquista do poder, mais razoáveis se tornam os posicionamentos. De fato, Milei já começou a afirmar que a dolarização não será imediata, que as relações dos empresários privados com a China seguirão normais, que as políticas serão implantadas ao longo de vários anos (toda a sua “revolução”, segundo ele, levará uns 60 anos! É candidato a ditador de uma longa dinastia?). Todavia, não bastarão reajustes discursivos. Na hipótese de chegar à presidência, o candidato anarcocapitalista enfrentará sérios problemas de governabilidade. A sua bancada parlamentar poderá não chegar a um terço das cadeiras legislativas, o que será insuficiente para até para barrar uma votação de impeachment. Ademais, a sua instabilidade emocional poderá agravar a situação de conflito com o Congresso — e, com isso, desencadear uma crise institucional incontornável.

Podemos inferir, então, que será praticamente inevitável uma aliança com os macristas. Aliás, a direita do Juntos por el Cambio está numa excelente posição estratégica: pode chegar ao poder de maneira direta, com a eleição da sua candidata, ou de maneira indireta, via coalizão de governo numa eventual administração Milei. Tudo considerado, pode-se dizer que Javier Milei — assim como ocorreu no Brasil, com o inelegível — cumpre a função do conhecido “bode na sala”. Se isso foi uma jogada de mestre intencional, ou um providencial sorriso da fortuna, fica para depois averiguar. Mas é fato que a inserção desse candidato no campo de batalha da cruenta política argentina contribui enormemente para que a direita capitaneada por Mauricio Macri, rejeitada na eleição anterior, regresse à Casa Rosada. E, por mais incrível que pareça, esse retorno poderá contar com a ajuda do eleitor peronista-kirchnerista, que, entre a moderação da direita macrista e a radicalidade ultradireitista de Milei (o bode na sala), escolherá as políticas mercadistas de Macri.

Notas
*Murray Newton Rothbard foi um economista e teórico político vinculado à Escola Austríaca de economia, juntamente com Ludwig von Misses, sua maior influência, e Friedrich von Hayek. Rothbard é considerado o formulador das bases do anarcocapitalismo.
**Raúl Baglini foi um advogado e político argentino, filiado à Unión Cívica Radical (UCR). Cumpriu mandatos de senador e deputado. Enunciado durante um debate, a máxima ficou conhecida como “teorema de Baglini” graças ao registro do jornalista Horacio Verbitsky, numa matéria do Diario Popular.

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