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Quem deve errar por último?

Paulo Peres
Especialista em análise institucional, instituições políticas brasileiras, partidos e eleições. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
Especialista em análise institucional, instituições políticas brasileiras, partidos e eleições. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A rejeição do marco temporal como critério para a demarcação das terras indígenas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em si mesma, representou outro marco temporal, atinente aos embates cada vez mais frequentes entre o Legislativo e a Suprema Corte. Essa decisão acendeu o rastilho de pólvora que fez explodir a indignação de deputados e senadores das bancadas BBB* contra os magistrados. A guerra, então, foi declarada. O campo de batalha: a Constituição. A maior vítima: o nosso já tão desarranjado arranjo institucional.

Opondo-se à decisão judicial de 21 de setembro, além de outros posicionamentos do STF ao longo dos últimos anos, a contraofensiva BBB tem como objetivo principal retirar da Suprema Corte a função de controle de constitucionalidade. A artilharia do Senado já disparou dois mísseis legislativos para minar o poder do Supremo: no dia 27 de setembro, a Casa aprovou o PL 2.903/2023, que mantém o marco temporal como critério para as demarcações; no dia 4 de outubro, a sua Comissão de Constituição e Justiça aprovou, numa votação de 42 segundos, a PEC 8/2021, que estabelece prazos para pedidos de vista dos ministros e veda decisões monocráticas que suspendam a eficácia de leis e atos normativos de efeitos geral e dos presidentes da República e das casas legislativas. Ocorre que a própria Corte já havia estabelecido um prazo para o pedido de vistas — assim como as decisões monocráticas, muitas vezes usadas de maneira abusiva, se fazem necessárias em alguns momentos.

Todavia, a arma mais letal ainda está aguardando tramitação na Câmara dos Deputados. Também no dia 27 de setembro, o deputado federal Domingos Sávio (PL/MG) protocolou a PEC 50/2023, que altera o artigo 49 da Constituição, inserindo um dispositivo que atribui ao Congresso Nacional nada mais nada menos do que a competência para sustar decisões do STF transitadas em julgado que, segundo a maioria parlamentar, extrapolem os limites constitucionais.

As justificativas apresentadas na proposta são sofríveis. Além de erros grosseiros de redação, o raciocínio é esquálido. Diz-se lá no texto que o Judiciário tem “a sublime função de julgar e assegurar o pleno cumprimento (…) das leis aprovadas pelo Legislativo”. Isto é, fazer cumprir, e não contestar, o que a maioria legislativa decidiu. Segue o texto dizendo que, para o equilíbrio dos Poderes, “não há que se falar em um Poder Supremo para o Judiciário, mas antes em dever supremo de assegurar o respeito às leis elaboradas (…) em nome do povo”. Só faltava retirar o termo “Supremo” da denominação da Corte, inclusive porque, pela proposição, o Legislativo passaria a ser o supremo. Inquestionável. “Dessa forma,” brada retumbante a proposta, “é fundamental que haja recurso capaz de rever a decisão de afronta à vontade da ampla maioria do povo devidamente representado no Congresso Nacional”. Decisão de afronta ao Congresso? Nem Rousseau iria tão longe com a vontade geral!

Desde Benjamin Constant sabemos que, nas constituições liberais, é fundamental diferenciar lei e direito. A principal missão do Estado é garantir os direitos individuais, que são anteriores e superiores à sociedade. Para tanto, o Poder Legislativo é incumbido de fazer as leis, sempre sujeitas a mudanças conforme as maiorias eventuais de cada período. Isso significa que, a depender do posicionamento majoritário do parlamento em dado período, as leis produzidas podem violar os direitos, ao invés de garanti-los. Para evitar esse tipo de degeneração das instituições, percebeu-se necessário atribuir a um Poder não eletivo e não ocasional a incumbência de zelar pelos direitos, protegendo-os sempre que fossem ofendidos pelas leis. Excluídos, por consequência, o Legislativo e o Executivo, restava investir o Judiciário dessa função, que hoje chamamos de “controle de constitucionalidade de leis e atos políticos”.

Esse tema ficou mais claramente exposto nos debates constituintes quando da formação da república norte-americana. Os fundadores perceberam que, para evitar as tiranias, tanto da minoria como da maioria, não bastava replicar o modelo da divisão dos poderes, pois era preciso instituir, a partir dele, um sistema de checagens mútuas. O controle de constitucionalidade, que veio a se desenvolver ao longo de anos de posicionamentos da Suprema Corte em julgamentos de casos específicos, já era, portanto, suposto e esperado pelos constituintes. Sabiam eles que o Legislativo, por natureza isento da checagem do Executivo, só poderia ser checado pelo Judiciário. Nesse sistema de pesos e contrapesos, então, o Legislativo e o Judiciário limitam o Executivo, o Judiciário limita o Legislativo, o Executivo não limita ninguém e ninguém limita o Judiciário.

Isso quer dizer que o próprio desenho constitucional das democracias liberais estabelece aquilo que, a partir do fim do século 19, nos Estados Unidos, passou a ser chamado de supremacia judicial. Isto é, quando o Judiciário se pronuncia, dentro das suas atribuições de intérprete das leis e da Constituição, não há Poder superior algum que o possa contestar — e não há como ser diferente, pelo menos no âmbito do constitucionalismo liberal.

Obviamente, essa supremacia cria a oportunidade para abusos na relação com os demais poderes, pois configura uma situação de disparidade de armas institucionais em favor do Judiciário. O único remédio, também amplamente debatido pela teoria política do século 20, é a autocontenção do magistrado — que, infelizmente, nem sempre preza pela modéstia. Pretender instituir o “crime de hermenêutica”, ou, como no caso, inventar um controle de constitucionalidade para o controle de constitucionalidade do Judiciário, é um disparate que, além de desarranjar as instituições democráticas, ameaça os direitos.

Todavia, está claro que a ofensiva da bancada BBB não é motivada pelo simples desconhecimento do constitucionalismo liberal, mas precisamente pelo contrário, pela pretensão de solapar os seus fundamentos. Ocorre que a agenda da maioria legislativa mudou sensivelmente desde 2018, assumindo um perfil reacionário e mercadista radical, agregando a direita e a extrema direita. Por sua vez, o STF continuou majoritariamente progressista — entenda-se por progressista um ativismo favorável às agendas identitária, de gênero e verde. No governo Bolsonaro, o Executivo era um aliado das pautas dessa maioria legislativa, mas o STF, não; no governo Lula, o Executivo é aliado das pautas progressistas, mas está acuado pelas pressões e chantagens da bancada BBB; o STF, não. Logo, não é por mero capricho legislativo os recorrentes ataques ao STF. A Suprema Corte é o maior enclave de resistência aos projetos contra os direitos homoafetivos, femininos, indígenas, ambientais e outros que fazem parte do pacote progressista. A sua arma mais potente, e exclusivamente sua, é o controle de constitucionalidade.

Magistrados cometeram abusos? Sim. Alguns deles gigantescos. Ainda assim é “menos pior” que o STF seja o Poder a errar por último.

Nota: *BBB se refere às bancadas parlamentares informalmente denominadas de boi, bíblia e bala, por estarem associadas aos interesses ruralistas, religiosos e da segurança pública mais ostensiva e à posse de armas.

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