Artigo

Quando a única certeza é a incerteza

José Mário Wanderley Gomes Neto
é doutor em Ciência Política, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna "Ciência Política" da PB.
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José Mário Wanderley Gomes Neto
é doutor em Ciência Política, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna "Ciência Política" da PB.

Na semana anterior, um julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ganhou destaque nos órgãos de imprensa e se transformou num “assunto tendência” (trending topic) em diversas redes sociais: os ministros daquele tribunal foram provocados a decidir uma questão de alta repercussão social e econômica, envolvendo a definição quanto à taxatividade do rol de procedimentos previstos em norma da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Este cenário litigioso, também existente em matéria de saúde pública, porém massivo quando se trata de saúde suplementar, põe frente a frente instituições operadoras de planos de saúde (buscando equilíbrio atuarial e maximização de lucros, necessários à sua própria existência), usuários e parentes de usuários (intencionando prolongamento de vida, cura, tratamentos e dignidade para si ou para os seus) e uma agência reguladora estatal (sujeita a pressões econômicas, políticas e sociais sobre o trabalho técnico).

Tal debate posiciona, de um lado, os interesses dos planos de saúde e das seguradoras e, de outro, os interesses de usuários dos planos e de seus respectivos advogados. Afinal, 1) se considerada taxativa a referida lista, haveria argumento sólido para a negativa de diversas demandas ali não previstas, gerando uma bilionária economia anual em favor das operadoras; 2) se considerada meramente exemplificativa (não taxativa) a lista, estaria aberto o caminho livre para a inclusão de cobertura de tratamentos e procedimentos ali não previstos, seja administrativamente, seja por ordem judicial, baseada em mera indicação médica, em favor de várias categorias de usuários, entre eles idosos, pais de autistas e pacientes de câncer.

Um ambiente institucional não cooperativo com raras exceções quanto à coordenação para a construção de soluções conjuntas, propício à judicialização das referidas demandas. Transfere-se ao Poder Judiciário, diante da incerteza quanto ao cabimento das demandas por procedimentos e tratamentos, a tarefa de decidir sobre a interpretação de normas, cujo efeito concreto é ter que decidir, dentre várias questões, quem deve viver ou morrer, quem deve sentir dor ou quem deve viver com dignidade. Profissionais de saúde são treinados para entender e decidir questões éticas desta natureza, juízes não.

Daí o alto grau de subjetividade judicial ao julgar demandas em saúde suplementar: com frequência se vê decisões judiciais divergentes sobre idênticos pedidos (por ex., tratamentos, procedimentos cirúrgicos ou fornecimentos de medicações). Quando o convencimento é pela negativa do pedido, o julgador se justifica em precedentes neste sentido e por argumentos de natureza econômica e política; quando o convencimento é em favor do pedido, a justificativa é construída sobre outros conjuntos de precedentes e sobre o peso da indicação médica favorável. 

Uma das razões de existir um Tribunal Superior (STJ, TST e TSE) é uniformizar o entendimento sobre a interpretação de uma norma infraconstitucional e contribuir para que as decisões judiciais sobre um mesmo tema passem a ser uniformes em todo território nacional, trazendo estabilidade e previsibilidade para o sistema de Justiça.

No dia 4 de junho de 2022, os nove ministros da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça tiveram que decidir sobre a referida questão controversa, com o propósito de unificar entendimento sobre a interpretação do rol de procedimentos e tratamentos da ANS, fixando o precedente que deveria guiar os julgamentos dali em diante. Cabia-lhes a tarefa de decidir entre a não taxatividade (com total liberdade para o Judiciário decidir o que deve, ou não, ser custeado) e a taxatividade (com a consequente exclusão da atuação judicial nestes casos), com grandes custos decisórios para ambas as correntes interpretativas.

Decidiram, entretanto, que o rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo, mas que, não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde. Inclusive, ao impor estas condições, foram além do objeto do conflito (a interpretação da norma da ANS) e efetivamente legislaram em matéria de saúde suplementar, quando as escolhas seriam da instituição reguladora e do Poder Legislativo.

Esta posição é fruto de uma postura que procurou reduzir ao máximo os custos decisórios do Tribunal e, de certa forma, manter a atuação judicial nos temas de saúde suplementar. Adotou-se a interpretação salomônica da taxatividade mitigada,o que, em linguagem acessível, significa trocar o “tudo cabe, até que o juiz diga que não cabe” pelo “tudo não cabe, até que o juiz diga que cabe”. Para o bem ou para o mal (e tais categorias relativas dependem necessariamente dos interesses de cada um), previsibilidade e estabilidade são condições necessárias ao bom funcionamento das instituições judiciais. Neste caso, foram trocadas, mais uma vez, pela subjetividade e pela manutenção do empoderamento judicial.

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