Artigo

Sobre liberdade, democracia e isolamento

Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

A pandemia do coronavírus desafiou nossas certezas a respeito do que é liberdade individual e, consequentemente, do que é razoável o Estado pedir ou exigir dos indivíduos que vivem sob a sua égide. As apressadas e constantes decisões sobre o que pode ou não abrir as portas de forma abrupta como é a evolução do vírus trouxe à baila as questões fundamentais e os dilemas que remontam à própria definição do conceito de Estado moderno.

A liberdade religiosa, por exemplo, é indissociável da própria noção de Estado moderno. Cabe lembrar que enquanto Maquiavel propunha a análise das questões do Estado como veritá effettuale delle cose, Lutero desafiava o Estado/religião com a publicação das teses contra as indulgências. O processo que começa no renascimento culminará na percepção weberiana da guerra dos deuses, ou seja, cada um é senhor de si e pode determinar os critérios morais que orientam o próprio comportamento, seja (ou não) este conjunto diretamente ligado a um grupo religioso institucionalizado. Todos sob um guarda-chuvas de um sistema normativo comum mínimo: o Estado. O direito à liberdade individual de autodeterminação nasce, portanto, junto com a ideia de liberdade religiosa.

No entanto, não se pode confundir direito ao livre exercício da religião com direito à participação em cerimônia presencial. A aglomeração gerada por este tipo de prática pode resultar na contaminação dos indivíduos que trabalham em serviços essenciais e as respectivas famílias. Em tempos de pandemia, fica claro que a saúde é um bem coletivo, não individual, e que, portanto, exige espírito republicano e coletivo. Espírito esse que não se confunde com ausência de liberalismo ou desconsideração de liberdades individuais. Se a liberdade está em autodeterminar as próprias ações, também está em ajudar a construir o sistema normativo que vai reger si mesmo e todos os outros.

Assim também, não é trivial exigir de um comerciante que abra mão do seu único meio de subsistência sem que haja voz no processo que levou a esta decisão. Como julgar os comerciantes que consideram razoável reabrir os negócios? O que seria mais natural, diante dos desafios impostos e que são também consequência da desarticulação entre os entes federativos e a eterna indecisão do Executivo nacional quanto ao seu posicionamento em economia? Da mesma forma, podemos culpar profissionais de serviços essenciais que, todos os dias, põem em risco a própria saúde e a de suas famílias – e que são a favor de medidas mais restritivas?

O processo deliberativo que ocorre com a participação política tem também caráter educativo e aproxima os indivíduos de realidades que eles não vivenciam. A participação em fóruns que incluam profissionais de linha de frente e familiares de falecidos – inclusive comerciantes e familiares – e a escuta ativa das partes é fundamental para se fazer política no melhor sentido do termo. Temos tecnologia para não precisar de aglomeração, a fim de que isso aconteça. Temos metodologia para trabalhar as discordâncias e debater com civilidade. A imposição de regras sem a participação das partes mais atingidas não é a resposta mais adequada, e os resultados podem ser desastrosos. 

No que pese a importância da deliberação destas questões na mais alta corte de Justiça brasileira e nas decisões executivas e ainda que tomadas com base nas melhores evidências e com auxílio dos melhores especialistas, mais do que nunca as políticas públicas precisariam ser construídas em conjunto com a sociedade. Especialmente com os principais atingidos pelas mudanças. Ainda que a rapidez dos acontecimentos prejudique o processo participativo tradicional, a exclusão completa dos atingidos pelas decisões resulta numa compreensível deslegitimação das instituições que assim o fazem, principalmente as locais. Democracia é sempre a resposta.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.