Artigo

Uma teologia política para a guerra total e contínua

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
S
Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

“Subjugai a terra, sobre as aves do céu e sobre tudo que vive e se move sobre a terra.” (Gênesis 1, 26-29)

Percebo muita gente perplexa diante da volta à cena do debate sobre a intersecção do campo religioso com a política — especialmente com os discursos “recentes” da teologia do domínio e do arrebatamento de matriz evangélica, que seriam apontados como base ideológica da extrema direita brasileira. Em consequência, gostaria de lembrar três pontos. Um: a política e a religião sempre tiveram profundo intercâmbio teórico e prático.[1] Dois: a teologia do domínio tem afinidade eletiva com a escolha da guerra civil do neoliberalismo.[2] E três: a teoria do domínio consegue ter adesão social porque se aproveita dos escombros e das ruínas produzidos pelo neoliberalismo.

Em Leviatã, Thomas Hobbes defende a “secularização” como processo de indivisibilidade do corpo político. É a soberania una, como alma do Estado que criaria a impossibilidade de distinção entre os poderes espiritual e temporal. Hobbes desejava alertar para o perigo de crença nas promessas de salvação em outro mundo e, assim, neutralizar os conflitos que põem em risco a incolumidade do corpo político. Esse corpo precisaria ser uno para evitar a Guerra Civil Inglesa (1642–1649) e as facções político-religiosas. Nesse sentido, seria preciso que o representante da soberania estatal encarnasse a figura do pastor que tem a seu cargo todo o rebanho como súditos. O soberano-pastor seria para Hobbes uma espécie de delegado de Deus e substituto do patriarca Adão.

Nesse lance, Hobbes tenta garantir a legitimidade da soberania estatal e, ao mesmo tempo, ancorá-la na figura de um líder cristão, pastoral e pacificador, com a função de unificador e de promotor da paz civil. Mas sabemos também que quando Hobbes fala em paz, remete à paz entre os territórios da Europa central que estavam se organizando territorial e administrativamente como Estados modernos. Simbólico desse momento é o Tratado de Westfália (1648). Essa demarcação de fronteira na Europa deixava clara que a função pastoral do monarca dizia respeito a esses territórios e seus súditos. Muito diferente era a função da terra dos lobos selvagens, territórios objetos de conquista colonial (notar que até o território que conhecemos como Irlanda era objeto de conquista colonial). Nessas terras, não existiam o direito e a defesa fundados em um contrato de proteção e obediência. Ali, o que valia era a lógica do poder cinegético[3] representada pela figura bíblica de Nemrod, o soberano caçador de homens. No Antigo Testamento, Nemrod foi o primeiro rei da humanidade, o tirano que se impôs acima dos homens e como um igual a Deus. Construiu a torre de Babel como um monumento a si. É apresentado na Bíblia como um caçador voraz carregado de ódio e animalidade. Expressão de Caim, Nemrod é a expressão da violência da conquista territorial; essa violência necessária para instaurar a fronteira entre o território protegido da civilização e o território de caça da barbárie e da selvajaria. Nemrod não pode ser o pastor; ele deve garantir a segregação entre os súditos e instauração da violência como medida de sobrevivência. É o líder do Estado de natureza, no qual os homens são selvagens e filhos da maldição que pesa sobre Caim. Com esses homens e territórios, o uso da violência é legítimo e válido.

Podemos falar, então, de diferentes teologias políticas territoriais justificadas pela linhagem paterna e pela função destas em uma fronteira que define quem são os sujeitos e quem são os objetos ou presas do mundo. É importante ressaltar aqui que a condição da civilização é a colonização, a conquista do Novo Mundo. É a união entre a cidade de Nemrod e seu território de caça que constrói esse mundo. Seguindo esse modelo bíblico, a ordem europeia gerou a desordem do resto do planeta para poder criar a competição de acumulação entre os seus Estados, que apenas alcançam uma relativa paz entre si a partir do pacto colonial. Contudo, fora dessa fronteira não há paz, nem mesmo relativa. Há mera anomia. É com a globalização (ou certo esgotamento dos novos territórios de caça) que temos a mudança mais sensível dessa demarcação de fronteiras — agora com uma linha global. Foucault[4] chama essa mudança de governamentalidade neoliberal, em que há a banalização dos territórios. Existe uma soberania global, e tudo se torna fronteira. O Estado de exceção — que, antes, estava demarcado a partir do espaço fora da linha de Westfália — vai se expandir. É isso que observamos com mais evidência no 11 de setembro de 2001. Acabou a ideia de que existe território sagrado, inviolável. A metrópole colonial não é mais o território sagrado. Não existe mais santuário. Isso traz uma consequência óbvia: se não existe mais santuário, então, o mundo inteiro se torna território de caça numa guerra civil total e contínua.[5]

A fronteira da guerra se torna global e, ao mesmo tempo, nômade, partisan, guerra de guerrilha que lembra as invasões mongóis. Após 2001, os Estados Unidos e sua “Guerra ao Terror” inauguram (por exemplo, em Bagdá) uma nova forma de criar fronteira. É a tática do bater e correr. Destrói-se tudo e, depois, se encarrega de reconstruir tudo com seu dinheiro, suas empresas e empreiteiras. Não existem mais tratados e alianças estáveis. Os aliados podem se tornar inimigos; eles devem estar dispostos a realizar determinadas tarefas (lembra muito o Western norte-americano). O xerife, para alcançar um malfeitor, forma um bando para a caça (Nemrod), que arregimenta para que a caçada seja feita e a a Lei e a Ordem sejam implantadas. Qualquer semelhança com as táticas de Lawfare, drones e estratégias de bolhas algorítmicas não é mera coincidência.

Mas a questão é que a hegemonia dessa nova fronteira e dessa nova guerra de conquista precisa se fundamentar em uma nova teologia política,[6] não é?! É aqui que ganha importância a teoria do domínio. De matriz evangélica norte-americana, surge na década de 1970 com movimentos religiosos que buscavam impor um nacionalismo cristão. Segundo Boff,[7] o dominionismo agrupa várias tendências cristãs fundamentalistas, inclusive integralistas católicos que postulam uma ideologia totalitária para a direita cristã no campo da política e dos costumes.  

Essa teologia é adepta e incentiva a inserção de religiosos na arena política, transformando o discurso de “Crente não se mete em política” para “Irmão vota em irmão”. Isso ocorre numa perspectiva dualista, em que fiéis na política atuariam como uma reserva moral combativa diante dos desvios morais da sociedade. Em outra perspectiva teológica, ainda que em termos políticos estejam alinhados aos pentecostais da Teologia do Domínio, os protestantes reformados compreendem que todas as áreas de atuação humana são importantes. Deus sendo o responsável por toda a atividade humana, o fiel não deveria opor entre si o “ser sagrado” e o “ser secular”. O argumento é que os fiéis não poderiam deixar de participar da vida pública, pois estaríamos numa “guerra cultural”.[8]

Esse termo de guerra cultural é muito importante porque enfatiza exatamente o novo significado de guerra da governamentalidade neoliberal que se coaduna com a defesa dos valores conservadores da teoria do domínio. Pois se não existem mais fronteiras para a guerra contra os não cristãos, os territórios familiar e cotidiano vão se transformar em campo de guerra e possíveis ruínas se não enfrentarmos os pagãos (quaisquer pagãos). Por isso, os cristãos têm de lutar nas esferas privada e pública contra os movimentos feministas, os movimentos religiosos de matriz africana, os movimentos antirracistas ou LGBTQIA+; quaisquer pagãos servem. Ao mesmo tempo, as políticas de governamentalidade neoliberal produzem a naturalização da luta e da guerra pela sobrevivência. A vida cotidiana é transformada em palco de guerrilha, seja pela precariedade do trabalho, seja pelas violências física e moral.

O mundo vira o caos do Apocalipse. Uma senhora da Assembleia de Deus confessa: “Meu filho, a vontade que tenho é dar na cara de Deus, tacar fogo no mundo. Aí, venho aqui, orar para que ele volte logo”.[9] Por sua vez, fração da classe média brasileira acredita que a inclusão social produziu a queda de seu status social, mas também foi responsável por suas  perdas materiais.[10]  Nos Estados Unidos, atualmente, quem tem menos de 35 anos não vai viver o American Way of life[11], enquanto na França, Muriel Pénicaud, ex-ministra do Trabalho, profetiza que, em 2030, 50% dos postos de trabalho do mundo fecharão.[12]

Nesses termos, parece razoável apostar no fim do mundo e em uma política de fim do mundo. Parece racional e imperativo defender uma teologia fundamentalista e excludente que sustente a seleção do “povo escolhido” por meio de uma nova aliança e uma nova filosofia da história. A chamada teoria do arrebatamento[13] defende uma política do fim do mundo, na qual a aposta do futuro desaparece no horizonte — e a guerra civil tem de ser promovida para precipitar o retorno de Deus à terra. Aqui, futuro significa aposta nas ruínas da vida social. A ideia é a de garantir a ordem dos clãs para a sobrevivência dos nossos. Nesse sentido, parece também racional que o niilismo do supremacismo branco e misógino prevaleça. Inversamente, parece ingênuo apostar no humanismo, na teologia cristã do cuidado de si e do outro. Isso soa até hipócrita e elitista. Afinal, a Fraternidade morreu com a grande família humana. Por isso, não cabe mais pluralidade e diálogo. Por isso, aos cristãos virados para o Nemrod do Antigo Testamento, apenas cabe a caça e a guerra. O argumento é que a inversão valorativa produzida pela guerra cultural deve levar, necessariamente, à defesa de um líder violento e bruto: o nosso caçador. E, a cada dia, caberia a nós construirmos novas fronteiras, novas cidades de Nemrod com seus povos eleitos, novos territórios de caça com suas novas presas. Afinal, pensa o cordeiro, se for esse o desenho divino, tanto faz que eu vire presa. Porque, afinal, a escolha não cabe a mim.


[1] Há intenso debate na teoria política sobre o conceito de “secularização”. Podemos mobilizar nesse debate Carl Schmitt, que, ao analisar o conceito de soberania, proclama que todos os relevantes conceitos jurídicos e políticos do Estado moderno são conceitos teológicos “secularizados”. Outros como Reinhart Koselleck, Karl Löwith, Javier Hervada, Ernst H. Kantorowicz e Robert Bellah apontam para a necessidade de se repensar o conceito de secularização não à luz da separação entre o sagrado e o profano, mas por meio de uma relação de intercâmbio entre ambas as esferas, pois os princípios teológicos continuam operando na formação de categorias epistemológicas de naturezas política, histórica, filosófica e jurídica. E ainda autores como Arendt, Habermas e Blumenberg, que afirmam que a ideia de “secularização” não guarda em si continuidade, mas separação entre os campos político e teológico. 
[2] DARDOT, Pierre (et al). A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021.[3] Ver a obra Manhunts de Grégoire Chamayou. Princeton: 2012
[4] Ver Segurança, Território e População de Foucault. Martins Fontes: 2008.[5] DIAS, Bárbara L. C.V.; DELUCHEY, Jean-François. “The Total Continuous War and The Covid-19 Pandemic: Neoliberal Governmentality, Disposable Bodies e Protected lives”. In: Law, Culture and The Humanities, novembro de 2020, p.1–18.
[6] Nesse sentido, ver a tese de Rodrigo de Sá Netto intitulada “O partido da fé capitalista”, defendida em 2022, na Universidade Federal Fluminense (UFF). O autor demonstra, mediante dados documentais, a relação entre as missões interdenominacionais, as igrejas neopentecostais e o empresariado brasileiro.
[7] Ver em: https://aterraeredonda.com.br/a-teologia-do-dominio-2/.
[8] Segundo o teólogo calvinista Yago Martins, o termo “guerra cultural”, usado para descrever um embate cultural entre grupos religiosos entre 1871 e 1878 na Alemanha, foi apropriado por Olavo de Carvalho, certamente o maior divulgador do conceito no Brasil. Ver em A religião do bolsonarismo: um ensaio teológico. Episteme, 2021.
[9] Esta fala está contida na entrevista que o teólogo Fábio Py concedeu à Unisinos. https://www.ihu.unisinos.br/184-conferencistas/602841-prof-dr-fabio-py.[10] https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2024/03/09/quaest-bolsonaristas-creem-que-perderam-importancia-com-inclusao-social.htm.
[11] Ver em https://forbes.com.br/listas/2020/07/ranking-revela-que-eua-e-o-2o-pior-pais-do-mundo-para-criar-uma-familia-entre-membros-da-ocde/ e em https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/12/alta-no-custo-de-vida-faz-mais-jovens-morar-com-os-pais-nos-estados-unidos.shtml.
[12] https://www.ihu.unisinos.br/634322-muriel-penicaud-ate-2030-o-mundo-do-trabalho-passara-por-um-tsunami.[13] A crença no arrebatamento da Igreja faz parte de um sistema escatológico fundamentalista que costuma ser chamado de dispensionalismo pró-milenista. Ver em SEBASTIÃO, Andréa. “A crença no arrebatamento da Igreja: seus desenvolvimentos e transformações imagéticas”. Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação de cCiências da Religião, na Universidade metodista, 2010.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.