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Talvez este texto não chegue até você

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Enquanto eu escrevia este texto, o Telegram disparava para todos os seus usuários brasileiros, inclusive para mim, uma nota informando que “a democracia está sob ataque no Brasil”. O texto prosseguia afirmando que Projeto de Lei (PL) 2.630/2020 “matará a internet moderna”.

Acharam ousado? Vocês não viram nada. O Google incluiu na página inicial um texto contrário à legislação sobre fake news. Segundo ela, uma norma poderia “aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil” [i].

A empresa ainda pagou mais de meio milhão em anúncios à Meta (dona do Facebook e do Instagram) para divulgar propaganda contrária ao PL 2.630, que propõe a regulamentação das plataformas[ii]. Além disso, há a desconfiança de que conteúdos desfavoráveis ao gigante de buscas na internet tiveram alcance diminuído quando se pesquisava sobre o assunto no site[iii].

O Twitter não ficou atrás. Inúmeras arrobas populares no Brasil, que tentaram fazer posts defendendo regra mais assertiva no controle de conteúdo pelas plataformas, não conseguiram publicar suas falas ou também tiveram alcance visivelmente diminuído [iv] [v]. Já a Meta divulgou nota afirmando que legislar sobre fake news levaria o Brasil a fazer como fazem países de regimes antidemocráticos[vi].

Toda essa resposta em conjunto, violenta e barulhenta das Big Techs foi reação ao referido PL[vii], que pretende instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. O PL, inspirado em regulação internacional, como na alemã Netzwerkdurchsetzungsgesetz, ou NetzDG (Lei de Fiscalização da Rede)[viii], também apelidada de “Lei do Facebook”, pretende ser aplicada aos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada que ofertem serviços ao público brasileiro e que tenham mais de 2 milhões de usuários registrados, com o objetivo de responsabilizar as plataformas por monitorar o conteúdo circulante em seu interior. E mais, o PL pretende determinar que as plataformas vedem a atuação de contas inautênticas e automatizadas, que identifiquem conteúdos impulsionados e publicitários, que limitem o número de encaminhamento de mensagens e o número de contas controladas pelo mesmo usuário, que garantam a liberdade expressão do indivíduo e demonstrem transparência nos motivos de retirada de conteúdo e suspensão de contas, bem como que produzam relatórios trimestrais de transparência, que tenham representantes legais no País, entre outros.

Parece tudo bastante trivial, não? Mesmo assim, as grandes plataformas rugiram ferozes. Por quê? Sabe aquele meme do futebol que reproduz um trecho de uma conversa entre os repórteres Galvão Bueno e Tino Marcos em um jogo da seleção brasileira?:

“Tino Marcos — Galvão…

Galvão Bueno — Diga lá, Tino.

Tino — ‘Sentiu’”.

É isso. As grandes da tecnologia sentiram. E sentiram porque a norma brasileira, há alguns anos, estava aquém das necessidades de regulamentação e responsabilização que a rápida evolução da comunicação pelas plataformas requer. Eu mesma, em textos publicado aqui, na Problemas Brasileiros, especialmente nos artigos “Democracia nas mãos dos tech-bilionários[ix] e “Fake news e a democracia[x], chamei a atenção para o problema complexo que são as atuações ao deus-dará (como diria meu avô João) das Big Techs em território nacional.

O primeiro ponto tem a ver com a própria lógica das plataformas, que tem mostrado um mínimo esforço na retirada de conteúdos falsos, violentos e criminosos das nossas timelines. A razão é só uma: essas redes sociais ganham dinheiro com visualizações e cliques, ou seja, não importa o conteúdo, desde que este gere engajamento. Esse ponto ficou claro na pandemia — lembrem-se de quanto conteúdo descaradamente desinformativo passou por todos nós sem nenhum tipo de filtro.

Um problema ainda maior tem a ver com a moderação que as plataformas fazem dos conteúdos sem dar explicações claras, sem divulgar algoritmos de filtragem, sem justificar a lógica da manutenção de algumas contas e postagens, às vezes nitidamente criminosas e abusivas, e a extirpação de outras tantas contas e postagens inofensivas.

E por que esse problema é sério? Porque muito das nossas atividades políticas e sociais dentro da nossa democracia acontecem nas plataformas privadas, as quais podem manipular, acrescentar ou retirar conteúdos, mostrar só uma parte e não mostrar outros a seu bel-prazer. Isso ficou evidente no “esconder” de alguns conteúdos e inflacionamento da visibilidade de outras postagens na própria questão do PL 2.630. Isto é, a reação contundente das plataformas ao PL só justificou ainda mais a necessidade de que esse debate aconteça — e de que elas sejam obrigadas legalmente a dar mais explicações e não lavar as mãos.

Façamos um exercício imaginativo bobo: um dia, Elon Musk acorda sem ter o que fazer (ou foguete para brincar de lançar) e, do alto do seu império herdado, se reúne com outros bilionários donos das Big Techs e decide que um tipo de visão de mundo, ou de opinião política, ou de grupo racial/étnico/de gênero não terá mais suas ideias divulgadas publicamente. Em contrapartida, outros grupos poderão impulsionar massivamente suas ideias. Hoje, isso poderia acontecer.


[i] https://www.poder360.com.br/tecnologia/google-inclui-texto-contra-pl-das-fake-news-na-home-do-buscador/[ii] https://www.cartacapital.com.br/politica/google-pagou-mais-de-meio-milhao-de-reais-em-anuncios-no-facebook-contra-pl-das-fake-news/[iii] Não seria a primeira vez que o Google faria algo nesse sentido. Em junho de 2022, diante da divulgação do primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, da intenção de criar o Ato de Notícias Online — que remuneraria melhor a imprensa canadense quando alguém clicasse em um link de jornal em site buscas e redes sociais —, por cinco semanas, o Google limitou o acesso a notícias online dos usuários. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj5ey8g425go[iv] https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/407325/redes-manipulam-o-debate-com-abuso-do-poder-econom.htm[v] https://www.moneytimes.com.br/pl-das-fake-news-jornalista-retruca-elon-musk-e-twitter-marca-publicacao-como-fake-news/[vi] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/04/29/meta-pl-das-fake-news-criticas.htm[vii] https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2256735[viii] https://www.uol.com.br/tilt/ultimas-noticias/deutschewelle/2023/04/29/entenda-o-pl-das-fake-news-inspirado-em-lei-alema.htm[ix] https://revistapb.com.br/artigos/democracia-nas-maos-dos-tech-bilionarios/[x] https://revistapb.com.br/artigos/fake-news-e-a-democracia/

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