Artigo

Tempo parlamentar e democracia

Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Na última semana, dois eventos emblemáticos chamaram a atenção em parlamentos sul-americanos. No Brasil, o presidente da Mesa da Câmara dos Deputados editou um decreto (Ato da Mesa) poucas horas antes de uma votação de vital importância para o governo. No Chile, um parlamentar discursou por 15 horas para aguardar a formação do quórum necessário para a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Sebastián Piñera. Num primeiro momento, ambos os casos podem parecer exemplos semelhantes de formas de “burlar” uma regra ou tensioná-la até o limite.

A formação de quórum para votação em Casas Legislativas é sempre tarefa de quem quer mudar o estado de como as coisas estão. Assim, ainda que tenha fator simbólico diverso, a abstenção ou o não comparecimento a uma votação sempre terá efeitos no resultado. Em outras palavras, cabe ao interessado pela proposta construir o apoio e reunir os parlamentares para votar a questão de interesse com base em critérios claros que definam quem pode votar, e como. Tal definição pode parecer algo simples num primeiro momento, mas tem forte impacto no resultado e na legitimidade dos processos.

No caso chileno, a presença física na audiência constava como única hipótese possível para contagem de voto, e um único parlamentar, cujo voto seria o de minerva, se encontrava em quarentena obrigatória após contrair covid-19. Nas regras internas da Casa chilena, não consta limite de tempo para a fala parlamentar em determinados momentos da sessão, por isso, foi permitida a fala de 15 horas do congressista que aguardava a virada do dia e consequente retomada dos trabalhos do colega. No caso brasileiro, tendo concluído que os parlamentares presentes fisicamente não seriam suficientes para alcançar o quórum necessário, o presidente da Mesa editou um Ato em edição extraordinária do Diário da Câmara dos Deputados permitindo o voto dos parlamentares que se encontrassem fora da Casa em missão oficial.

Paralelo a isso, segue se reunindo o Grupo de Trabalho destinado ao estudo do Regimento Interno. Como o diabo mora nos detalhes, cabe observar que, diferente de uma comissão especial ou permanente, o Grupo de Trabalho não está sujeito à regra de proporcionalidade partidária que rege os demais colegiados. Carregado de informalidade, no Grupo de Trabalho, cabe ao presidente, e somente a ele, apontar os membros de seu interesse, desrespeitando a premissa básica da proporcionalidade partidária em respeito ao voto do eleitor, que, nunca é demais lembrar, escolhe o partido antes de escolher o candidato no sistema eleitoral proporcional de lista aberta.

Some-se a isso a repentina mudança regimental que reduziu a possibilidade de intervenção da oposição (minoria) nas sessões do Plenário. Em qualquer lugar do mundo, o Parlamento é o lugar de garantir a voz e a possibilidade de intervenção das diferentes perspectivas. Também nunca é demais lembrar que, se a democracia usa o recurso da maioria para resolver contentas, é preciso vigiar para que a maioria não exerça uma ditadura sobre a minoria. Os instrumentos regimentais que dão voz a essas minorias são a melhor forma de garantir voz a todos e todas. No Chile, assim como em diversas Casas Legislativas estaduais dos Estados Unidos, dá-se chance à minoria organizada manifestar sua posição por meio da exploração do recurso mais escasso e valioso em qualquer Parlamento: o tempo dos parlamentares.

Assim, não basta conseguir uma base de votação, é preciso que essa base esteja coesa e comprometida a ponto de aguardar a votação por longas horas, pegar um avião de seu estado para comparecer ao Plenário ou renunciar a uma missão parlamentar que julgue menos relevante que a questão a ser deliberada na sessão. É certo que não cabe ao Supremo Tribunal Federal intervir em uma questão tão interna corporis como a definição dos votantes de uma sessão, mas não é preciso Direito, Teoria Política ou modelo para saber que não se mudam as regras no meio do jogo.

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