Em recente editorial de capa, a revista Veja [1] noticiou que os Estados Unidos da América do Norte estão diante de um movimento de volta à criminalização das práticas abortivas. De fato, há uma grande possibilidade de reversão, pela Suprema Corte dos EUA, do célebre caso Roe vs. Wade, que, em 1973, autorizou Norma McCorvey (citada no processo com o nome fictício de Jane Roe) a realizar um aborto e encerrar sua gravidez. A avaliação dos constitucionalistas estadunidenses é de que essa reviravolta, dentro da Suprema Corte, terá reflexo imediato em pelo menos 26 estados da federação, prontos para adotar leis que restrinjam ou proíbam o procedimento abortivo.
No Brasil, 68 dos 69 projetos de lei referentes ao direito ao aborto, na Câmara e no Senado, tratam de restringi-lo [2]. Sem dúvida, o cerco em torno dos direitos reprodutivos das mulheres fez-se mais intenso a partir do governo Bolsonaro. Um exemplo é o projeto de lei do Estatuto do Nascituro, retomado pela base do governo na Câmara em setembro de 2021, cujo objetivo é qualificar como crime doloso a interrupção da gravidez, inclusive nas circunstâncias em que ela é permitida no Código Penal, tais como: estupro, risco de morte para a mãe e anencefalia fetal [3].
Segundo o editorial da Veja, a contraofensiva sobre os direitos das mulheres decorreria do fanatismo religioso e da difusão deste para as camadas mais pobres da população, bem como da falta de cultura liberal dos países em desenvolvimento. Acredito que o tipo de discurso usado no editorial da revista serve para reforçar o argumento religioso, inclusive o do Vaticano na sua campanha contra a “ideologia de gênero”, na sustentação de que os direitos de gênero somente são defendidos por mulheres de elite branca e rica, pertencentes à cultura “globalista”. Dentro dessa visão particular do mundo, as mulheres pobres defenderiam os valores tradicionais familiares e a criminalização do aborto.
Tanto o editorial como o discurso religioso contra a suposta “ideologia de gênero” omitem dois fatores importantes. O primeiro é que o regresso sobre os direitos das mulheres nos EUA tem estreita relação com a grave crise econômica, alimentar e ambiental do governo Biden. Pois a privatização dos serviços públicos e a restrição do seu alcance, que se traduz nas tarefas de reprodução (saúde, cuidado, alimentação etc.) geraram novamente a necessidade de que corpos feminilizados devam realizar, com mais intensidade, tarefas não remuneratórias e obrigatórias. Já o segundo é que essa contraofensiva sobre as mulheres decorre da associação entre neoliberais e neoconservadores, que produziram a pauta política da alt-right estadunidense [4].
Vale lembrar, com Silvia Federici [5], que os corpos feminilizados sempre serviram de base para a acumulação primitiva do capital, especialmente nas Américas. Essa acumulação sempre foi articulada com a “invisibilização” de grupos politicamente minoritários, com um controle social e estatal sobre eles, e até com as políticas de criminalização e extermínio.
Melinda Cooper [6] também mostrou o quanto a contraofensiva neoconservadora estadunidense vem associada à contraofensiva econômica neoliberal. Assim, políticas de ajuste e austeridade fiscal são regularmente articuladas com a transferência da responsabilidade familiar privada na criação da “dívida doméstica” e do confinamento das mulheres para fins de atividades de reprodução social. Afinal, mais escravos precisam ser paridos para suprir a necessidade de superexploração do trabalho e de mais acúmulo do capital. É esta relação que precisa ser escamoteada a todo custo, tanto pelo discurso do Vaticano e outras igrejas quanto pelo da revista Veja, cuja capa estampa a frase “Meu ventre é livre. Precisamos falar sobre aborto”.
O que fica explícito na associação entre a contraofensiva neoliberal e a contraofensiva neoconservadora é que uma economia libidinal de obediência está sendo promovida, sustentada, por um lado, pela moral religiosa e, por outro, pela moralidade financeira. Afinal, com o fim do ciclo fordista de acumulação, a moralidade dos trabalhadores e trabalhadoras não pode mais ser produzida na fábrica. A subjetividade precisa ser produzida a partir da moralização pela dívida, pela precarização da vida e por um mundo de trabalho flexível.
Não é à toa que a disputa e a tutela dos corpos se dão particularmente quando se trata de corpos feminilizados “pobres”. É para estes corpos que se dirigem especialmente as políticas de educação financeira, em escolas cada vez mais precarizadas, e, ao mesmo tempo, o rechaço da educação sexual. Também é para eles que se promove uma educação fundamentada na disciplina militar e na obediência diária.
O empobrecimento acelerado criado pelas políticas de austeridade fiscal, bem como a correlata expansão da financeirização das economias familiares, gera o assujeitamento desses corpos à obediência e ao disciplinamento da fábrica do sujeito endividado. Como as mulheres são as mais confinadas nos espaços de subsistência, é sobre elas que recai o maior peso de exploração. Como diz Verónica Gago [7], as economias populares “feminizadas” servem de laboratório constante para as práticas neoliberais.
Para entender nosso mundo atual, é necessário colocar em perspectiva as políticas de hierarquização dos valores diferenciados de luto e de vida. Assim como é necessário compreendermos as políticas de produção e reprodução dos trabalhadores, por meio da educação e do cuidado. Neste aspecto, é interessante saber que: de um lado, há mais de 500 mil sem-teto, hoje, no território estadunidense, a maior parte composta por mulheres [8]; e, de outro, o governo Biden fez um “Pix” de 33 bilhões de dólares como ajuda militar à Ucrânia [9]. Além disso, esta guerra financiada pelos EUA vai matar de fome as populações já precarizadas (compostas em sua maior parte por mulheres e crianças) na Somália, no Sudão e no Afeganistão [10], maiores dependentes do trigo e dos produtos alimentícios que se tornarão, em breve, inacessíveis ou demasiadamente caros, em razão do conflito. A invasão do Iraque, em 1991, e seus embargos já mataram, de fome, mais de 600 mil crianças [11].
Eu poderia citar inúmeros exemplos, mas acho que já ficou claro que só entenderemos esta política contraofensiva sobre os corpos feminilizados (e a ideia correlata de natureza) se compreendermos que estes são alvo de uma constante, brutal e sanguinária máquina de guerra, que objetiva nomeá-los como terra de ninguém.
[1] https://veja.abril.com.br/saude/ameaca-de-retrocesso-nos-eua-reforca-a-urgencia-do-debate-sobre-aborto/
[2] Idem.
[3] Ver tese de Marina Basso Lacerda, intitulada: Neoconservadorismo de periferia – articulação familista, punitiva e neoliberal na Câmara dos Deputados, Iesp: 2018, Rio de Janeiro.
[4] Idem.
[5] Federici, Silvia. O Calibã e a Bruxa, São Paulo: Elefante, 2017.
[6] Cooper, Melinda. Family Values, Between Neoliberalism and the New Social Conservatism. Nova York: Zone Books, 2017.
[7] Gago, Verônica. A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular. São Paulo: Elefante, 2018.
[8] https://www.bbc.com/portuguese/geral-45809130
[9] https://headtopics.com/br/biden-pede-ao-congresso-mais-us-33-bilh-es-em-ajuda-militar-e-humanit-ria-para-ucrania-internacio-26004523.
[10] https://www.estadao.com.br/internacional/guerra-na-ucrania-agrava-a-fome-na-africa-oriental/
[11] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft23029804.htm
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