Não sou a primeira, nem serei a última, a usar a frase aparentemente contraditória de Tamasi de Lampedusa para interpretar mais um arroubo reformista na história brasileira. A ideia contraditória da mudança que possibilita a continuidade é velha conhecida das elites históricas nacionais, e os debates recentes acerca de mudanças no sistema eleitoral, no Plenário da Câmara, são o novo exemplo da antiga formulação de Lampedusa. Também trazem novo argumento contra o eterno ímpeto reformista que contagiou a opinião pública já há algum tempo.
Gattopardo, título do livro, descreve aquele que representava o epítome da opulência da elite italiana em declínio, assustada com a ameaça republicana irrefreável vinda da unificação capitaneada por Giuseppe Garibaldi. A personagem que encarna a nobreza falida é Don Fabrizio, que sempre esteve no topo da estrutura social do reino da Sicília – e que assiste, impotente, à revolução republicana.
Tancredi é sobrinho de Don Fabrizio, igualmente prejudicado pelas mudanças e que apresenta o dilema de forma moderna e astuta, ao tio. Ao se referir à revolução que instauraria a república e, possivelmente, acabaria com a rígida estrutura social da qual se beneficiavam, Tancredi dá o veredito: “Se nós não estivermos presentes, eles aprontam a República. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?”.
Para manter a posição social num contexto de mudanças e resolver a questão financeira, a solução encontrada é arranjar um casamento de Tancredi com Angelica, filha de Don Calogero Sèdara, um homem que não tem vergonha de sua origem plebeia – e também não consegue se inserir nas rodas da nobreza. Se Don Calogero e Angelica não tinham a origem e a posição de Don Fabrizio e Tancredi, tinham o dinheiro que faltava para estes. A solução não ocorre sem reclamação do filho de Don Fernando, para quem Tancredi estava se juntando aos “canalhas que alimentam a desordem na Sicília”.
Aqui, saímos da Itália e voltamos à tumultuada semana no Plenário da Câmara, que começou com a interrupção repentina da apreciação de uma medida provisória para a inversão de pauta, com direito a quebra de interstício, e apreciação de uma proposta de emenda à Constituição que tinha sido aprovada apenas dois dias antes na comissão. O parecer aprovado na comissão trazia contradições internas, relegadas à decisão do Plenário.
Dentre outros tantos pontos, a mudança do sistema eleitoral vigente para outro, apelidado de “distritão”, e a possibilidade de estabelecimento de coligações partidárias eleitorais em eleições proporcionais. Em comum, ambas as propostas privilegiam o personalismo político em detrimento das ideias, dos programas e dos projetos de nação. Ambas retomam o culto a personalidades e privilegiam elites regionais, dois elementos tão presentes na nossa história política.
Chama a atenção o atropelado processo legislativo, com pitadas de truculência regimental. Truculência essa que, por sua vez, é consequência da reforma regimental, aprovada também sob a presidência de Arthur Lira e que está sendo bem-sucedida em reduzir a capacidade de atuação das minorias parlamentares, bem como acelerar a aprovação de projetos.
Não se pode dizer desta presidência da Câmara que não esteja investindo em mudanças. Arthur Lira prometeu (e promete) novas reformas, independentemente do devido debate, da inclusão da sociedade ou da opinião de especialistas. A sociedade brasileira tem demonstrado que quer mudanças, ao passo que, a Câmara, na semana passada, provou que está disposta a mudar o que for preciso para que tudo permaneça como está.
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