Gosto de escrever meus textos à mão, com uma velha caneta Parker, presente dado por meu pai no fim dos anos 1950. Existia, em muitas das famílias brasileiras de classe média, este ritual de premiar os filhos recém-alfabetizados com uma caneta-tinteiro. Sinto ainda as pontas dos dedos direitos doloridos, às vezes encharcados de tinta e suor, pela tensão de pressionar o papel e ir inscrevendo, desenhando, cada letrinha. Havia silêncio, concentração e beleza. Nada, como acontece atualmente, disputava a atenção de uma criança descobrindo o poder de escrever, ler e se expressar.
Sinto não ter a memória do instante mágico de minha primeira leitura e compreensão. Anos depois, no ambiente do fim da década de 1960, ganhei a minha primeira máquina de escrever, uma Olivetti Lettera 22, portátil. Havia ainda naquela escritura maquinal elementos rituais, tais como a sala silenciosa e o tempo reservado, no qual se escrevia. Existia também os objetos de culto operados pelo escritor, como a fita de tinta, o papel-carbono, o papel sulfite e o cesto de lixo, destino de poemas e contos descartados e de outros textos renegados. Por que, em plena pandemia do covid-19, lembro miticamente de tudo isso?
Talvez porque as principais coisas que nos foram retiradas, além das milhares de vidas e suas histórias, sejam os rituais abrangentes de comunicação e relacionamento, bem marcados pelo ambiente da casa, da rua, do trabalho, da igreja, da escola, do entretenimento e do amor. Rituais expressos como acontecimentos, como formas sociais de viver e conviver que existiam antes do nosso nascimento. A pandemia do covid-19 destruiu radicalmente estes territórios-rituais com os quais tínhamos relações afetivas. Qual o sentido e o significado de milhões de pessoas e suas histórias, famílias, empresas e empregos terem desaparecido? Quantos vínculos foram desamarrados?
A pandemia intensificou a mediação feita pela comunicação digitalizada. As relações humanas e a comunicação de empresas e instituições ficaram dependentes das telas de computadores e smartphones. Em tempo de distanciamento social forçado, foram nos tirados inúmeros contextos, e a representação digital se transformou em um ingrediente único nas nossas formas de viver. Nunca se fez tanto de forma remota e com uma abrangência nunca vista e testada.
Nos ambientes institucionais brasileiros ajustados com os princípios contemporâneos de gestões ambiental, social e econômica, o vírus trouxe um questionamento quase imediato e uma transformação não planejada, a ser estudada e avaliada, das formas de relacionamento e comunicação do patrão, do professor, do pastor, do padre, do pai de santo, do político, dos pais – enfim, destes “pês” que representam os poderes e os controles tradicionais sobre indivíduos, comunidades, eleitores, consumidores e empregados.
No Decameron, escrito por Giovanni Boccaccio, logo após a peste negra de 1348, que devastou a Europa, dez jovens atravessam o período da epidemia em uma vila senhoril, afastada de Florença, ouvindo a narração de histórias, que os fizeram esquecer a morte que devastava e desorganizava a vida cotidiana. Do ventre da peste, iniciada em 2020, espero que tenham nascido boas histórias, muitas escritas ou filmadas nas telas dos smartphones, que, mais do que trazer outras perspectivas sobre a vida e a morte, tenham contribuído para desacelerar o tempo e reencantar o mundo, tal como acontecia quando ganhei a minha primeira caneta.
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